in

Marcos Lacerda

As Edições GLS acabam de lançar mais um livro que pretende questionar os moralismos tradicionais da sociedade moderna. “Um estranho em mim” (192 pp., R$ 37,50), do autor paraibano Marcos Lacerda, 39, conta a história de Eduardo, bem-sucedido médico de meia-idade, e de seu amor por Alexandre, um adolescente de 17 anos. A obra transcende o universo gay e lésbico e traz à tona sentimentos comuns a todos nós, como a solidão e o medo.

Em entrevista ao Dykerama.com, Lacerda fala sobre a experiência de escrever seu primeiro romance, cujas sementes surgiram durante um período de estudos em Paris. Além de escritor, Lacerda é psicólogo clínico e especializou-se em teoria psicanalítica. Atualmente, desenvolve pesquisas sobre a violência contra homossexuais, como aluno do doutorado em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba.

Leia abaixo a entrevista que o autor concedeu por e-mail.

Dykerama.com – Como surgiu a idéia de escrever o livro?

Marcos Lacerda: Na época eu estava estudando em Paris, e fui apresentado, em uma festa, a um estudante de medicina. Sabe aquele rapaz que você olha e sente imediatamente que está diante do que habitualmente costumamos chamar de “um bom menino”? Pois esse era ele! Ele era o tipo certinho, mauricinho, estudioso, bom filho, incapaz de dar qualquer desgosto a papai ou a mamãe, cabelinho e roupinha no lugar, tudo combinando.

Lá pra tantas, nos encontramos sozinhos em um canto da festa. Talvez por eu ser psicólogo e por ele estar desejoso de encontrar alguém com quem desabafar, esse rapaz começou a me contar fatos de sua vida. Ele estava assustadíssimo, pois era noivo de uma garota, uma moça a qual ele julgava amar profundamente; ela era, segundo ele, a moça ideal, adorada por ele e por toda sua família. O único problema é que ele estava se descobrindo profundamente atraído por um dos enfermeiros do hospital onde ele estava estagiando. Nunca vou esquecer o rosto assustado daquele rapaz me dizendo: “esse não sou eu, o que está acontecendo? Eu tenho feito coisas que nunca fiz antes; tenho sido negligente com minhas obrigações só para me encontrar com (fulano). Existe um estranho dentro de mim, me obrigando a fazer coisas que eu não reconheço em mim mesmo”.

Naquele momento compreendi perfeitamente a dor e a angústia daquele rapaz; ele estava experimentado o que há de mais humano em cada um de nós. Ele estava descobrindo que existe algo para além do desejo da sua família, da sociedade, da sua noiva. Ele estava descobrindo que existe dentro de cada pessoa, um estranho com o qual temos que nos deparar, e com o qual teremos que aprender a lidar. Essa conversa não deve ter durado mais que 20 minutos; outros conhecidos se achegaram até nós e, após a festa, eu jamais tornei a encontrá-lo outra vez. Nascia, entretanto, naquele encontro no canto de uma festa em Paris, a semente do que mais tarde se tornaria: “Um estranho em mim”.

Dykerama.com – O romance fala sobre o amor entre um homem de meia-idade e um adolescente. Que peso ou função essa relação ganha em sua obra?

Marcos: Estabelecer que o amor tenha que acontecer entre pessoas de idades próximas, é tão preconceituoso quanto estabelecer que o amor só possa existir entre pessoas de sexos opostos. Na verdade, nossa sociedade estabelece que o único amor aceitável (ou digno de ser levado a sério), é aquele que acontece entre um homem e uma mulher em idade fértil. Um senhor de 70 anos que se apaixona por uma senhora de 68 anos é, quase sempre, tido como algo “engraçadinho”; assim como um pré-adolescente de 10 anos que se apaixona por uma coleginha do colégio, não é levado a sério pelos adultos. Da mesma forma, se alguém mais jovem vive com alguém mais velho costuma-se afirmar que a motivação para essa relação só pode ser dinheiro. Já quando pessoas do mesmo sexo se apaixonam entre si, são taxadas de doentes ou pervertidas.

É hora de percebermos que os sentimentos não têm sexo, idade, cor ou raça; eles simplesmente acontecem, são intensos, vivos e profundamente valiosos para quem os está sentindo (e, por isso, devem ser respeitados). A diferença de idade entre as personagens do meu livro é apenas mais um detalhe que tem a função de incomodar e romper mais um paradigma; forçar o leitor a reflexão sobre a forma preconceituosa com a qual nos habituamos a ver e a julgar a vida alheia.

Dykerama.com – Pode-se dizer que “Um estranho em mim” é um romance autobiográfico?

Marcos: Não, “Um estranho em mim” nada tem de autobiográfico. Minha história de vida, ou mesmo o meu modo de reagir diante das situações, em nada se parece com as personagens centrais do livro. Sou bem menos reativo ou passional do que eles; sou um capricorniano que tem os pés bem plantados no chão. Lido com a realidade de uma maneira mais concreta, mais objetiva. Não sei se isso é uma qualidade ou vantagem para mim, mas é assim que eu sou. Definitivamente estou, em termos de vivências, bem distante do que acontece no livro.

Dykerama.com – Que sentimentos pretende gerar com seu livro, não apenas no leitor homossexual, mas também no heterossexual?

Marcos: Qualquer sentimento que seja despertado por um bom livro, é válido. Não importa se ira, ternura, medo, encantamento ou ansiedade. O bom da vida é ter a chance de sentir o coração reagir, de experimentar o próprio espírito se pronunciar. Se o meu livro criar sensações no leitor (sejam elas quais forem), ele já terá valido a pena. Afinal, essa é a função da arte.
Existe, entretanto, um ponto que eu gostaria que todos, homossexuais ou heterossexuais, fossem capazes de perceber: todos nós temos um, ou vários, estranhos dentro de nós mesmos. E quando nos entregamos ao amor, é certamente nessa hora que com mais força nos deparamos com esse nosso outro lado; um lado capaz de fazer coisas maravilhosas, mas também de ser mesquinho e, por vezes, cruel. Quem, homossexual ou não, já não olhou para um grande amor do passado e disse: “como eu pude fazer aquilo com aquela pessoa?”; ou então: “como eu pude me submeter a tal coisa por amor?”; ou ainda: “meu Deus, aquela pessoa era mesmo eu?”

Entender que a única coisa que verdadeiramente nos pertence é esse estranho que nos habita, nos liberta. Faz com que paremos de tentar controlar ou dominar o ser amado. Aquele a quem amamos não nos pertence. Eduardo não foi capaz de compreender isso, e por isso viu-se aprisionado pelo estranho que o habitava.

Dykerama.com – Qual a importância de sua obra para a discussão da homossexualidade?

Marcos: Não gosto da idéia de se discutir a homossexualidade. Quando se discute a homossexualidade, parte-se do princípio que ela é o diferente, é algo que precisa ser compreendido ou explicado. É como se disséssemos que ser heterossexual é normal, e que é necessário compreender os comportamentos que fogem desse padrão. A homossexualidade é uma orientação sexual como outra qualquer, e por isso não precisa ser discutida. Não se discute a heterossexualidade, se discute?

Penso, entretanto, que é fundamental que se discuta (sempre e muito) a forma como a sociedade lida com a homossexualidade (e com a sexualidade de um modo geral). Nesse sentido, “Um estranho em mim” parece colocar (ou ratificar) a idéia de que as carências e o amor homossexual são iguais aos de qualquer outro ser humano. Os gays não são seres depravados, movidos pelo sexo desenfreado (como algumas pessoas costumam pensar). Gay quer sexo como qualquer outra pessoa; mas quer, também, amor, carinho e parceria nos relacionamentos como todos os casais deste planeta.

Desse modo, as personagens do livro experimentam ódios, ternuras e desamparos, como qualquer casal, heterossexual ou homossexual. As personagens são profundamente humanas, e é por isso que os leitores, gays ou não, têm se identificado com o livro. Dessa forma, “Um estranho em mim”, é uma história que além de provocar emoções e reflexões, contribui para que se perceba que a vida dos homossexuais é tão natural, humana e cheia de idiossincrasias como qualquer outra. E já é hora da sociedade começar a perceber isso. Aliás, é hora de começar a compreender que existem várias e diferentes homossexualidades e heterossexualidades (sempre no plural). Diferentes facetas que nos fazem uma só coisa: humanos!

Dykerama.com – O senhor também desenvolve pesquisas sobre violência contra homossexuais. Pode me contar um pouco sobre esse trabalho?

Marcos: A homossexualidade masculina parece bem menos aceita socialmente (ou mais agredida) do que a feminina. Não estou com isso dizendo que as lésbicas não são discriminadas ou não sofrem preconceito; é claro que elas também são vítimas de profundas injustiças. O que estou dizendo é que se compararmos as estatísticas de gays e lésbicas assassinadas e/ou vítimas de agressões, os gays são, sem sombra de dúvida, a grande maioria das vítimas.

Existem explicitamente grupos de extermínio contra gays, o que não parece acontecer com as lésbicas. A relação lésbica, inclusive, ocupa espaço no imaginário erótico de uma boa parte dos homens do nosso país; muitos homens (heterossexuais) parecem sentir prazer em ver mulheres se tocando, se acariciando etc.

Estes mesmos homens, que muitas vezes julgam a homossexualidade masculina como algo doentio e digno de algum tipo de punição, parecem não tecer esse mesmo julgamento com relação às lésbicas. A minha pergunta central é: por que os gays são mais vítimas da violência do que as lésbicas? (insisto: essa afirmação não é minha, é fruto de levantamentos estatísticos). Atualmente, em minha pesquisa de Doutorado, tenho me debruçado sobre essa questão, e, ao que tudo indica, a resposta que vem se delineando a esse respeito é bastante interessante e surpreendente. Estou convencido de que, se compreendermos o porquê dessa dinâmica social que aplica regras, perseguições diferentes punições a um mesmo fenômeno (no caso a homossexualidade), isso nos possibilitará a criação de políticas de ação e prevenção à violência contra gays; políticas muito mais eficientes, e com muito maior poder de penetração e modificação social. Mas, a esse respeito, você vai ter que esperar o término do meu Doutorado.

Dykerama.com – “Um estranho em mim” é seu romance de estréia? O senhor tem planos de escrever outros livros com a mesma temática?

Marcos: Sim, esse é o meu primeiro romance. Para mim, entretanto, escrever sempre foi uma espécie de vício. Eu sempre estou escrevendo alguma coisa: um artigo científico, um conto, algumas pequenas histórias. Minha vida inteira sempre foi rabiscando ou anotando algum pensamento. Quanto aos meus planos, eu certamente tenho projetos de escrever outros romances (isso é mais forte do que eu), e certamente eles versarão sobre essa faceta humana: a homossexualidade. Atualmente, existe o projeto para um livro cujo roteiro vem, pouco a pouco, se delineando em minha cabeça. A esse respeito tenho feito uma anotação aqui, outra ali. O problema é que escrever um livro é como ter um filho; ele tem seu tempo próprio de maturação e de nascimento.

Depois que o roteiro de “Um estranho em mim” se delineou totalmente em minha cabeça, o livro levou exatos dois anos para ser concluído. Vamos ver quanto tempo esse “novo filho”, que já está maturando dentro de mim, vai levar para “nascer”. Espero que não demore; esse tipo de “gravidez” gera sempre um estado de desconforto e ansiedade, que só passa quando a gente senta e começa a escrever.

Dykerama.com – Gostaria de fazer algum outro comentário?

Marcos: As pessoas que se dispuserem a ler meu livro estarão, sem dúvida, embarcando em um fascinante mergulho ao interior de cada uma delas. Escuto depoimentos, e leio e-mails, de pessoas que me procuram pra contar como, ao terminarem de ler o livro, começaram a repensar suas relações afetivas (quer seja com marido, filhos, esposas etc.). É muito gratificante escutar alguém dizer: você me ajudou a pensar algo novo; ou então algo ficou diferente, dentro de mim, após o término da leitura.

Fica, então, o convite aos leitores: embarquem nessa busca e nesse encontro com esse estranho que existe em cada um de nós. Após a leitura, os comentários, opiniões e sugestões, vocês poderão me enviar diretamente através do e-mail: umestranhoemmim@hotmail.com.

Esse diálogo com vocês é importante para mim. E eu sempre me empenho em responder pessoalmente a cada um. Às vezes a resposta demora um pouco a chegar, porque são muitos e-mails para eu dar conta; mas eu respondo. Pode esperar.

BUHO: Grupo budista para homossexuais não pára de crescer

Donas de bar lésbico em SP são agredidas por policiais