Ativista e escritora, Dorcey iluminou a sexualidade LGBTQIA+ num país antes marcado pela repressão
Em 22 de maio, celebramos uma década desde o referendo histórico que legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo na Irlanda, um marco que transformou o país de um bastião conservador para uma nação mais acolhedora e plural. Essa revolução social não teria sido possível sem vozes corajosas como a da poeta e ativista queer Mary Dorcey, uma das figuras mais influentes da literatura LGBTQIA+ irlandesa.
Mary Dorcey iniciou sua militância nos anos 1970, após retornar à Irlanda, onde encontrou um ambiente marcado pelo silêncio e pela repressão. Em um país onde palavras como “homossexual” e “gay” sequer eram mencionadas, Dorcey decidiu romper esse muro de invisibilidade. Ela foi cofundadora de grupos ativistas, como o Sexual Liberation Movement na Trinity College Dublin, e se tornou uma voz indispensável na luta por direitos e reconhecimento.
Quebrando tabus com poesia e ativismo
Um dos momentos mais emblemáticos de sua militância ocorreu durante a conferência Women’s Week na University College Dublin, quando Dorcey substituiu uma palestrante ausente e declarou, para choque da plateia, a frase “se o feminismo é a teoria, o lesbianismo é a prática”. A afirmação causou rebuliço e uma manchete polêmica no Irish Times no dia seguinte, mas ela não se desculpou. Para Dorcey, a beleza e a verdade da comunidade queer mereciam ser vistas e ouvidas, custasse o que custasse.
Seu primeiro livro de poemas, Kindling (1982), expressa com ousadia imagens homossexuais, dando voz a desejos antes silenciados. Poemas como “Night” revelam uma intimidade vibrante e profunda, desafiando a invisibilidade que cercava a sexualidade queer na Irlanda. Mesmo dentro da comunidade, seu estilo direto causava desconforto, mas Dorcey sempre acreditou no poder da literatura para despertar consciência política e social.
Literatura que libertou desejos e abriu caminhos
Em 1989, Dorcey lançou sua coleção de contos A Noise from the Woodshed, que veio logo após uma decisão histórica do Tribunal Europeu de Direitos Humanos que obrigou a Irlanda a descriminalizar a homossexualidade masculina. Embora o lesbianismo nunca tenha sido explicitamente criminalizado no país, os contos de Dorcey foram pioneiros ao retratar mulheres lésbicas autônomas, que vivem seus desejos sem medo.
Esse trabalho recebeu o prêmio Rooney de Literatura Irlandesa e consolidou Dorcey como uma voz essencial para a literatura queer. Seus textos abordam a tensão entre o tradicional e o emergente, revelando as possibilidades de uma vida queer em meio a um contexto cultural ainda em transformação.
Bisexualidade e amor além das normas
O romance Biography of Desire (1997) é outro marco da autora, explorando de forma inédita a bissexualidade na literatura irlandesa. A história acompanha Katherine, que deixa o casamento para viver um relacionamento intenso com Nina, enfrentando medos reais sobre a guarda dos filhos devido ao preconceito legal e social. O livro antecipa debates que viriam a tona no referendo de 2015, ao mesmo tempo em que celebra a fluidez do amor e dos desejos.
Dorcey defende uma visão inclusiva e libertadora: “Devíamos ser todos bissexuais… Homens aprenderiam a se entregar aos prazeres… e mulheres aprenderiam a se satisfazer, em vez de esperar passivamente.” Seu compromisso é com a universalidade do amor humano, convidando o leitor a transcender rótulos e abraçar a diversidade do desejo.
Legado e influência para gerações LGBTQIA+
Hoje, Mary Dorcey continua ativa na literatura e reconhecida como membro da prestigiada Aosdána, organização de artistas da Irlanda. Sua obra mais recente, Life Holds its Breath (2022), reflete sobre sua trajetória e legado, encerrando com o poema “Banshee”, que declara: “Somos as mulheres sobre as quais nossas mães nos alertaram.”
Mary Dorcey é um farol que ilumina a luta e a beleza da identidade queer, inspirando gerações a romperem o silêncio e celebrarem o amor em todas as suas formas. Sua poesia e ativismo são um convite vibrante para que a comunidade LGBTQIA+ do Brasil e do mundo se reconheça na potência de sua própria voz.