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Mídia brasileira ignorou rebelião de Stonewall

Há exatos 40 anos, o astronauta Neil Armstrong desafiava as leis da gravidade ao pisar na Lua. O empresário americano poderoso Rockefeller se preparava para visitar a América Latina. Vera Fisher ganhara o concurso de Miss Brasil. O sítio de Monteiro Lobato em Taubaté (SP) havia virado ponto turístico. Pelé se preparava para as eliminatórias da Copa de 70, sua última, da qual o país sairia tricampeão. A Caloi lançava sua linha de bicicletas dobráveis.

Eram também tempos de uma pílula anticoncepcional masculina supostamente "capaz de neutralizar o espermatozóide humano" e de uma esquisítíssima vacina contra a cárie. E, apesar de nenhum veículo de comunicação brasileiro ter noticiado, foi também nessa época, no dia 27 de junho, que um grupo de homossexuais novaiorquinos iniciara no bar Stonewall Inn o que hoje convém chamar de "movimento gay moderno". Mas se até as mulheres já botavam as manguinhas de fora (como no anúncio "Abaixo os tabus" – Revista Manchete – 05/07/69) e a luta dos negros americanos eram uma constante nos jornais, por que os gays não eram notícia?
 
O fato foi constatado durante uma breve pesquisa nos grandes jornais da época – "O Globo", "Jornal do Brasil", "Correio da Manhã" e "O Estado de São Paulo" – e nas edições do mês de julho de revistas emblemáticas, como "O Cruzeiro", "Manchete", "Realidade", "Veja" e "O Pasquim". Apesar da precariedade na comunicação, informações de toda parte do planeta chegavam no mesmo dia por meio de agências internacionais (AP, Reuters, UIP) via telex, incluindo as chamadas "radiofotos". Neste período, grande parte das notícias que envolviam os Estados Unidos estavam ligadas a guerras (Israel e Vietnã) ou ao combate velado com a extinta União Soviética.

Em relação às notícias especificamente sobre Nova York, no dia posterior à rebelião de Stonewall, 28, os jornais publicaram somente matérias sobre o funeral da atriz Judy Garland – que estaria indiretamente ligado ao fato. Já no dia 29, o "Estado de São Paulo" anunciava que "a bolsa de Nova York estava mais estável". Logo abaixo, uma nota informava ainda que Wall Street havia parado por causa de quatro garotas que, em pleno centro financeiro, tocavam guitarras e clarinetes… sem camisa! Se várias notícias sobre Nova York chegaram às redações tupiniquins naquele dia, é fato que Stonewall foi a abafado ou menosprezado. Mas antes de se tirar qualquer conclusão precipitada, é preciso analisar o contexto da época.

O tabu da homossexualidade e a ditadura militar
No ano de 1969, o Brasil vivia o auge da Ditadura Militar. Havia uma euforia em relação ao milagre econômico. E também uma certa histeria da parte dos jornalistas que, por conta da implementação do Ato Institucional 5, tiveram a liberdade, já pequena, ainda mais restrita.

"Foi uma porrada que levamos. A gente não podia se comunicar, era tudo mentiroso. A Folha de São Paulo publicava receita de bolo quando era censurada. Mas na TV, a gente não podia fazer isso", desabafa a então jornalista Maria Cláudia, que apresentava diariamente o Telejornal Pirelli, na extinta TV Rio.

Apesar da premissa da objetividade, naquela noite do dia 28, o telejornal não noticiara nada sobre Stonewall, segundo Maria Cláudia. "A TV Rio estava falida e a única emissora que tinha correspondente internacional era a Globo. A única coisa que lembro é que existia um movimento hippie que era contra todas as regras e preconceitos. A gente só não podia noticiar fatos que comprometessem a política nacional ou tivessem a ver com alguma rebelião", disse a jornalista, que chegou a dividir bancada com Cid Moreira e Luiz Jatobá e foi uma das primeiras mulheres a apresentar um telejornal.

Já a revista "Realidade" que, segundo o jornalista Milton Coelho da Graça, "se propunha a tratar de temas importantes e era recordista em vendas" foi outro veículo brasileiro a ignorar o tema. Chefe de reportagem da sucursal carioca da revista na época, Milton disse que nem chegou a tomar conhecimento da rebelião porque estava fora do Brasil, num campo de guerrilheiros na Cisjordânia.

"Toda ditadura se preocupa em fazer do aparato de informação do seu país apenas entretenimento. Os jornais não tratavam de homossexualismo, porque havia também um preconceito social. O pessoal ainda estava no armário. Quando alguém se assumia, era sempre visto de maneira antipática até pelos próprios enrustidos. Foi a partir das barricadas de 68 que começou a surgir uma nova maneira de encarar isso. Surgiram os direitos civis dos negros, das mulheres e dos deficientes físicos", explica.

A jornalista e apresentadora da TV Brasil Lúcia Leme foi estagiária da TV Tupi nos anos seguintes à rebelião e trabalhou com a equipe que produzia o extinto Repórter Esso. Lúcia revela que sofria certa discriminação no ambiente de trabalho por ser mulher. "Os jornalistas eram machistas e diziam até que eu desmunhecava muito. Eu observava neles um certo deboche com relação à censura. Eles sempre tinham maneiras de burlar. O jornalismo era mais precário, menos presente na TV. O gay só aparecia em programas de humor, para ser debochado. Era um tremendo preconceito. Não havia nenhuma censura explícita quanto a isso. E nem precisava, porque ninguém saía do armário. Hoje já existe um certo respeito e o noticiário trata isso como um assunto qualquer".

Mídia americana também menospreza Stonewall
Para não dizer que o problema era somente nosso, os próprios veículos de Nova York divulgaram muito pouco a rebelião. Outra análise feita no material publicado em grandes jornais como "The New York Times" e "New York Post" mostrou que as notícias ficaram limitadas a divulgar o "quebra-quebra" em pequenas colunas. Em geral, os títulos privilegiavam os policiais, tratando-os como vítimas ("Quatro Policiais feridos em rebelião no Village" – NYT – 29/06/69). Um dos poucos veículos a contar a história pela ótica dos homossexuais foi o jornal "The Village Voice".

Uma cópia do artigo, inclusive, está exposta no hall de entrada do bar Stonewall atualmente. "A rebelião foi considerada uma história local e pequena. Não saiu em outros jornais americanos fora de Nova York. Aos poucos é que o mundo ficou sabendo, porque começamos a ter paradas gays. Hoje em dia, somos capa quase todo ano", disse Williamson Henderson, 57 anos, presidente da Associação dos Veteranos de Stonewall, que esclareceu ainda que nenhuma foto foi feita à época, nem pela imprensa nem por curiosos.

Aqui no Brasil, a única menção a algo explicitamente gay neste período foi uma matéria publicada na revista "O Cruzeiro", na edição de julho, sobre a travesti mais famosa do país: Astolpho Barroso Pinto – a Rogéria. Na reportagem, um longo perfil da artista, contando sua trajetória desde a infância pobre até as turnês pela Europa. Só para se ter uma ideia, ela foi a primeira artista contratada pelo Golden-Room do hotel Copacabana Palace. E também a única a ter autorização para realização de shows de transformismo em plena ditadura.

De acordo com James Green, em seu Livro "Trópicos Frescos", as primeiras notícias brasileiras sobre movimento gay começaram a ser publicadas só na década de 70. Um dos jornais pioneiros foi o alternativo "O Lampião da Esquina", editado, entre outras pessoas, pelo autor de novelas Aguinaldo Silva e o escritor João Silvério Trevisan. Resta saber agora se, quarenta anos depois e alguns tabus derrubados, Stonewall, enfim, terá o lugar que merece na mídia brasileira. É esperar para ver.

*Colaborou Tereza Cristina Amorim

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