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Minha família não me aceita: posso ser “deserdado”?

Infelizmente, o preconceito contra a comunidade LGBT continua sendo muito comum em nossa sociedade. Muitas vezes, este preconceito vem daqueles que deveriam nos amar incondicionalmente, como nossos pais, irmãos e avós.

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E esta falta de aceitação por parte da família pode ter alguns efeitos relevantes quando se trata de direitos sucessórios, ou seja, quando a pessoa LGBT tem direito a receber alguma herança ou pretende que seus bens não sejam transmitidos para uma pessoa específica após sua morte.

Alguns exemplos podem nos ajudar a refletir sobre o impacto que a falta de aceitação familiar tem nestes direitos sucessórios de pessoas LGBT.
 

Podemos pensar no caso de um pai que não aceita seu filho gay e que pretenda “deserdá-lo”.

Através da deserdação, que é obrigatoriamente feita através de testamento, o indivíduo estipula que seu patrimônio não poderá ser transmitido para algum herdeiro necessário (como é o caso do filho) após sua morte, em razão de fatos específicos e previstos em lei. A intenção do pai, portanto, pode ser a de deixar seu patrimônio para seus outros filhos, que não o filho gay. Mas isso é mesmo possível?
 

Não. A deserdação só é possível nos casos expressos da lei (particularmente, nos termos dos arts. 1.962 e 1.963 do Código Civil). Eles envolvem, por exemplo, a ofensa física, a injúria grave, relações sexuais com madrasta/padrasto, bem como a prática de crimes contra a honra e tentativa de homicídio contra o autor da herança ou seu cônjuge/companheiro.

Isso significa que o mero fato do pai “não gostar” de ter um filho gay não é o bastante para deserdá-lo – qualquer deserdação que não contemple os casos previstos expressamente na lei, e que não apresente os fatos sobre aquilo que efetivamente aconteceu, será considerada inválida pelo juiz.
 

Mas podemos pensar na hipótese de um filho que, por ser gay, não seja aceito por seu pai e tenha conquistado certo patrimônio ao longo da vida. Este filho poderá deserdar seu próprio pai em testamento, beneficiando, por exemplo, seu companheiro de vida que sempre o amou e apoiou? 
 
Neste caso, pode-se entender que a recíproca é verdadeira: a mera falta de aceitação parte da família não é, pela lei, o bastante para possibilitar a deserdação. Isso porque a lei estabelece como causa de deserdação apenas o abandono de filho ou neto que seja deficiente mental ou tenha grave enfermidade (art. 1.963, inciso IV do Código Civil).

Entendo, entretanto, ser possível defender juridicamente que o abandono em razão da orientação sexual também corresponda a uma das causas de deserdação, notadamente quando o abandono aconteceu em época na qual a pessoa LGBT era jovem e dependia do apoio da família. O mais comum, de qualquer modo, é que este abandono seja precedido de injúrias sérias contra a pessoa LGBT, ou mesmo agressões físicas – razões que, de acordo com a lei, são o bastante para motivar a deserdação.
 

Assim, muito embora seu pai não possa deserdá-la(o) pelo simples fato de ser LGBT, você poderá deserdá-lo caso ele, de alguma forma, tenha te destratado, ofendido verbalmente, ou agredido fisicamente por causa de sua sexualidade. E o mesmo vale para a mãe ou eventuais filhos da pessoa LGBT.
 
Mas uma vez feita a deserdação através de testamento, o que acontece? Quando alguém é deserdado, o que se espera é que a parte que iria para a pessoa deserdada seja transferida para uma outra pessoa. Assim, por exemplo, se um pai deserda um dos filhos, a parte do deserdado deveria, a princípio, ser transmitida para os demais filhos. Só que a lei não confia apenas na palavra do testador. É necessário provar que aconteceu o fato que motiva a deserdação – se a deserdação aconteceu em razão de uma injúria que o filho tenha cometido contra o pai, esta injúria deverá ser comprovada através de um processo judicial.
 
Considerando que o testamento só é aberto após a morte do testador (e, portanto, somente então se tem acesso àquilo que motivou a deserdação), competirá aos eventuais beneficiários provar a veracidade dos fatos alegados pelo testador. Logo, no exemplo da injúria, os demais filhos deverão provar que o filho deserdado injuriou o pai enquanto este estava vivo para, somente então, terem direito à parte que originalmente iria para o deserdado. E o direito de se provar a causa da deserdação, segundo o Código Civil, é de 4 anos contados da abertura do testamento.

O mesmo vale para o caso da pessoa LGBT que deserdou seu pai em razão as ofensas sofridas por causa de sua orientação sexual. Nesta hipótese, no caso de falecimento de pessoa LGBT, competirá à(ao) eventual companheira(o) ou cônjuge comprovar as ofensas cometidas pelo pai da pessoa falecida.
 

Por fim, é importante ressaltar que a deserdação só faz sentido quando o deserdado for descendente (filho, neto) ou ascendente (pai, avô) do testador. Qualquer um que não tenha descendentes, ascendentes ou cônjuge pode, livremente, dispor de todos os seus bens através de testamento, sem deixar nada para eventuais irmãos, tios ou sobrinhos com quem não mantenha boas relações.
 
*Pablo Antonio Lago é advogado especialista nas áreas de Família e Sucessões, Mediação Familiar e Direito LGBT. Doutorando e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Associado ao Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Autor do livro Casamento Entre Indivíduos do Mesmo Sexo: Uma Questão Conceitual, Moral e Política, publicado pela Editora Juruá, e de outros textos e artigos na área LGBT. www.pablolago.com.br 

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