"(…) Sempre me espanta a velocidade com que o esquecimento toma conta da memória individual e coletiva do passado recente. Essa ‘mostra’ não deixa de ser um esforço contra o esquecimento" (parafraseando Italo Moriconi)
Caio Fernando Abreu. Nenhum outro autor traduz com tanta verossimilhança os percalços da procura pelo outro, o anseio do futuro, a ambiguidade da morte e o vazio que permeiam nosso dia a dia de forma hamletiana: ser ou não ser o que desejamos, eis a questão.
Há mais de uma década não tinha meu autor de cabeceira. Eu que tanto frequentava a biblioteca fugindo de alguns títulos, encarando outros, me refugiando nos nomes mais fáceis, nas páginas mais finas, pensava sempre: por que eu não encontro "meu" escritor? Aquele que revelará de forma irreversível o meu interior, mudando o rumo das coisas, me obrigando a rever princípios, me chacoalhando para o amanhã.
Eis que numa noite no porão do Centro Cultural São Paulo, pela boca de Gilberto Gawronski, as palavras de Caio surtiriam em mim efeitos de encantador de serpente. A partir daquele momento não me senti mais órfão entre as fileiras de livros empoeirados na biblioteca. Fui em busca de "Os dragões não conhecem o paraíso" para (re)conhecer que eu também era um dragão solitário e sem o paraíso que amenizaria o peso das escolhas, das buscas.
Os 13 contos girando em torno do amor e suas possíveis (re)interpretações teriam um efeito sem retorno ao meu mundo anterior às personagens de Caio. Nunca mais chorei em público lendo algo tão arrebatador e impactante como "A beira do mar aberto". Eu, tão inocente, virgem, acreditando no outro, no amor eterno, na fidelidade, sendo devastado pela cegueira causada pelo sentimento que nos invade, causa vertigens e nos revela tão dependente um do outro.
Eu que me sentia incapaz de passar das primeiras páginas de "Morangos Mofados", eu que havia tentando duas vezes entender que livro era aquele que me chamava sempre que eu passava por ele, mofando na prateleira. Anos depois, quando tive maturidade para ler aqueles contos – e sempre me pergunto se tenho capacidade para entendê-los – pude compreender o porquê do não entendimento, do não reconhecimento, dos nãos estampados naquelas páginas que se chocavam com meu universo particular, tão distante do passo de Guanxuma, cidade imaginária onde suponho residir todos os personagens do autor, e quem sabe ele, ordenhando suas crias, personagens que como Adão e Eva moldaram o futuro. Mofado os morangos, a maçã, a expectativa do outro, de futuro, do meu amanhã, tão descolorido, tão cruel depois das histórias de Caio Fernando Abreu.
Esse choque que tomei quando me deparei com o gaúcho, que me (nos) deixou há 13 anos, permanece produzindo similares efeitos. E digo isso com propriedade. Seis anos encenando seus contos, oferecendo para o outro o contato com o autor e seus questionamentos, suas frases cortantes e ácidas, avassaladoras. Adolescentes, jovens, mocinhas, rebeldes, adultos frustrados, gays oprimidos, carentes, opressores, preconceituosos, suicidas, tantos adjetivos poderia usar para reverenciar meu público, aquele que me viu inúmeras vezes, que voltava para mostrar que sabia o texto de cor, para falar que havia adquirido o livro, para mostrar a forma como havia digerido a literatura do autor. Para se mostrar como um companheiro, um igual.
– Você é meu companheiro.
Eu (con)vivendo entre lágrimas, sorrisos, abraços quentes, mãos aflitas e carentes que me tocavam e dividiam comigo suas incertezas. Que era parecida com a do Caio, com as minhas. "Réquiem para um rapaz triste" se tornou um manifesto para meus amigos, os novos, os que se aproximaram de mim por causa das palavras do autor, os antigos e os que já estavam ao meu lado quando nasceu a personagem e suas angústias. Amigos e companheiros que sabiam que a atualidade do autor era mais pertinente e voraz do que eu supunha.
E fui nesses anos como um ordenhador humilde e serviçal propagando a literatura de Caio e me espantando com a repercussão. E me perguntava ingenuamente sempre: como um autor da década de 80 poderia comunicar tanto? Os grandes são assim, permanecem além e através de sua obra, sua arte, seus pensamentos. Caio Fernando Abreu (1948-1996) é desses, uma Clarice Lispector urbana – como li em algum lugar. Questionador, mutável, intenso, impulsivo e como uma necessidade de amar e ser amado que prevalece sobre os milhões de internautas. Se nos anos 80 o Caio já apontava para o esfacelamento das relações humanas, o que diria agora? Com os recursos de cam, msn, scraps, salas de bate papo, chat-fones e afins. A curiosidade nunca será sanada. Uma pena.
Resta a nós, leitores, criar links que atualizem sua obra com o dia a dia, o que não é muito difícil. Haverá sempre as damas da noite solitárias e decadentes num boteco escuro num gueto qualquer, "homossexuais tontos de amor não dado", adolescentes descobrindo o sexo, o outro, o vazio. Pacientes perdidos pelos corredores dos hospitais, infectados pela própria necessidade, por confiar no outro, por não se amar e querer antes de tudo amar o próximo. Jardineiros, esotéricos, funcionários públicos, professoras, loucos, bêbados, drogados e afins. Permitindo que a obra de Caio seja associada em cada momento presente, uma eterna epifania.
As ruas da Augusta continuam a mesma. Ainda há cursos na Oficina Oswald de Andrade. O Conjunto Nacional permanece ponto de referência. Homossexuais continuam sendo mortos em alguma esquina. Seus livros vendem pouco. Seus amigos continuam tentando. Algumas pessoas ainda escrevem cartas para não serem esquecidas.
Uma casa para Caio Fernando Abreu é pouco. Mas uma oportunidade para rever/conhecer e ouvir o que tanto faz a fama do autor. Uma mostra com trabalhos de teatro, concebidos a partir da literatura do autor é uma pequena demonstração do amor e da devoção que um escritor pode causar. Artistas-formigas trabalhando praticamente de graça. Seus textos são vertidos para o teatro rotineiramente. Pode procurar, há várias versões de "Dama da Noite", montagens cariocas, cearenses, curitibanas, paulistas, mineiras… Daria para ser feita uma mostra apenas com a montagem de um conto e suas possíveis leituras, questionar como é visto, decupado, sentido e deglutido o autor e sua obra.
A Mostra Cênica Caio F., que acontece no Casarão do Belvedere, em São Paulo, a partir do próximo dia 6 de maio, abrigará debates acerca da atualidade do autor. Caberá ao público presente perceber e fazer sua própria leitura a partir de suas próprias referências. Crônicas, textos teatrais e contos, gêneros diferentes da escrita poderão ser compreendidos e provocados de futuros leitores fiéis, seguidores da cartilha de Caio, de não desistir nunca, de apesar dos pesares continuarem dizendo sim, sins.
"Me dei conta de que, passados todos esses anos, o reconhecimento e o amor à sua literatura estão mais vivos que antes. Há, já, uma geração que não o conheceu mas que o lê avidamente, e se identifica completamente com suas perguntas e procuras. Uma das razões é que, como muito pocuos dos nossos autores, Caio conseguiu chegar ao nervo do coração urbano brasileiro. Para esse coração, felicidade é artigo raro, e amor é sentimento em extinção. Prisioneiros da inteligência contemporânea, habitantes de um país sempre à beira do abismo, eternamente aturdidos, sentimos (muita) gratidão por aqueles que, como Caio, nos fazem ainda acreditar que não podemos entregar os pontos antes do final da partida." (Luciano Alabarse)
*Rodolfo Lima é ator e jornalista.
Serviço:
Mostra Cênica Caio F.
Local: Casarão do Belvedere
Rua Pedroso, 267 – próximo à estação São Joaquim do metrô.
Reservas: