O americano Warren Allen, de 88 anos, é escritor, ativista gay, jornalista, pesquisador e humanista. Não bastasse tudo isso, ainda participou da rebelião de 1969, no bar Stonewall. Na época, era professor e dono do Variety Recording Studio, um estúdio de gravação, por onde passaram diversos nomes da música mundial, como Liza Minelli.
Desde que encerrou as atividades de seu estúdio, nos anos 90, Warren tem se dedicado à vida de escritor. Tem no currículo alguns livros, além de diversas colunas em jornais. O primeiro deles, "Whos who in Hell, lançado em 2000 (infelizmente não comercializado no Brasil), traz uma lista de pensamentos livres relacionados à filosofia clássica e contemporânea. O livro rendeu uma entrevista na rede de notícias CNN e uma resenha elogiosa no jornal The New York Observer.
Sua publicação mais emblemática, no entanto, é o estudo sobre os cinemas (pornô) da rua 42, Cruising the Deuce, entre as décadas de 40 e 80. Boatos dão conta de que até John Waters (diretor de sucessos, como Hairspray) queria transformá-lo em filme. Morador do Village e bastante caseiro, Warren conversou com A Capa por e-mail dias depois de ter passado por uma cirurgia no joelho.
Ele falou, claro, sobre sua participação no levante de 69, deu detalhes de como era Stonewall por dentro, abordou a morte de namorado por Aids e fez um balanço do movimento 40 anos depois.
O que você estava fazendo no dia da rebelião?
Eu tinha acabado de entrar nas minhas férias de verão. Metade do ano era professor de uma escola pública em New Canaan, Connecticut. Na outra, morava em NY com meu companheiro, Fernando Vargas da Costa Rica.
Como vocês se conheceram?
Foi na primeira semana em que cheguei de Iowa, em 1948, para fazer mestrado em literatura pela Universidade de Columbia. Eu era sete anos mais velho, mas foi ele quem me pegou num parque. Eu era ingênuo. Ele não falava inglês e me ofereci para ensinar. Quando o levei para meu apartamento naquela noite, ele foi meu professor, um expert nos assuntos sexuais. Tornamo-nos companheiros não-monogâmicos por quarenta anos até sua morte por AIDS em 1989.
Você chegou a ter um estúdio de gravação, não foi?
Fernando e eu fundamos em 1961 um estúdio em Times Square; ele era o engenheiro e trouxe clientes como Ballet Hispanico of New York, Chuito de Bayamon, Celia Cruz, Joselito, Joseito Mateo, Eddie Palmieri, and Tito Puente. Também Chubby Checker, Marvin Hamlisch, Lionel Hampton, Mary Martin, Ethel Merman, Arthur Miller, Liza Minnelli, Odetta, Paul Simon, Tiny Tim, e os produtores da Broadway Paddy Chayevsky, Harold Prince e Robert Whitehead. Quando não dava aulas, trabalhava no estúdio de dia; e o Fernando, à noite.
Como você ficou sabendo da confusão?
Nos jornais, li que tinha tido uma confusão no Village. Naquela noite, deixei o Fernando no trabalho e peguei o metrô para testemunhar o ocorrido. Para a minha surpresa, havia muita movimentação e barulho no Stonewall. Na noite anterior, no dia 27, a policia tinha feito uma batida, por conta de boatos de que havia um bar da máfia. O que era para ser uma simples batida de rotina num bar de bichas evoluiu para cinco noites de perturbações em que os gays, lésbicas e transgêneros se levantaram para exigir seus direitos e literalmente lutaram.
Como foi a primeira noite?
Embora muitos tenham dito que algumas lésbicas estiveram envolvidas, minha pesquisa nunca documentou isso. Um policial e um garoto tiveram algum tipo de discussão, eles se empurraram… Na primeira noite, os empregados foram presos e alguns clientes foram convidados a se retirar. A batida piorou depois das 2 da manhã, sábado, quando os clientes gays zangados, vários travestis e outros começaram a gritar gay power e jogavam pedras, moedas, garrafas. Os policiais foram atacados por 300 ou 400 pessoas e se enclausuraram no bar. Se sentindo acuados, eles chamaram mais policiais. Quando o reforço chegou alguns manifestantes se dispersaram, mas depois se uniram novamente. A polícia não me deixou entrar no bar, embora eu tenha dito que era jornalista.
Eu fiquei de pé do lado de fora e descobri que nem todos que estavam ali estavam de acordo. Alguns jogavam lixo nos gays. Uma pessoa que estava próxima pegou uma lata de lixo, outra pessoa pegou papel e pôs fogo e nós três jogamos uma lata em chamas no carro da polícia na frente do bar. Eu ainda posso ver claramente o policial que correu em nossa direção.
Você já era assumido nessa época?
Estava no armário durante as três décadas em que fui professor e isso poderia ter resultado na perda do meu emprego. Então, eu corri como o diabo, passando por um prédio triangular e com sucesso escapei para o Fedora, um restaurante conhecido por ser gay-friendly. Eu voltei lá todas as noites. A polícia foi atacada o resto da semana.
Que bares funcionavam na região?
A State Liquor Authority em 1960 planejava fechar todos os 40 bares gays estimados. O primeiro que fui foi o Mary, um lugar chato na oitava rua. O clube que eu ficava nervoso de ir sozinho era o Blue Parrot, um lugar de classe e tão cheio que todos se pegavam – gays ou héteros. Uma vez fui a um bar chamado Cork Club, na rua 72. Nunca mais voltei depois que um aluno estava se gabando de que seu pai era um dos gerentes que pagava propina à polícia.
O Keller, na Rua Barrow, era um bar de couro com alguns negros lindos. O Bom Soir era um bar em que Barbra Streisand e o Mr. Peppers (o namorado de Marlon Brando) se apresentavam basicamente para os héteros. Mas o bar era tão gay e tão cheio que você era tocado por qualquer um, o que levou muitas pessoas a propositalmente se mexerem para apreciar o toque. O Julius bar, com serragem no chão, fazia festas para pessoas mais velhas. Pelo fato de estar dentro do armário e ser professor de escola pública, escrevi Cruising the Deuce sob o pseudônimo de Allen Windsor – descrevi em detalhes o que aconteceu nas casas de filmes na rua 42 e fiz referência a alguns bares também.
Como era o Stonewall por dentro?
Era um lugar escuro, gelado, sujo e cheio de jovens, muitos menores, que eram drogados e faziam programa com quem quisesse. A vida gay na década de 60 era uma aventura. Era fácil encontrar sexo, mas também era problemático. Às vezes, o ar-condicionado não funcionava e o lugar ficava quente demais para gastar a quantia exorbitante de 1 dólar em bebidas aguadas servidas em copos que o bar não tinha água corrente para limpar. Para entrar, tinha que assinar um livro de visitas – dúzias de Judy Garlands e Frank Sinatras estiveram por lá. No salão dos fundos, a lei permitia dançar e contanto que você não tocasse a outra pessoa.
E as batidas?
Quando as luzes apagavam, era sinal de que a policia estava entrando, então tinha de parar de beijar e abraçar. O bar era fechado se casais fossem pegos dançando juntos. Para os clientes era um lugar relativamente seguro e valia o preço da bebida. Além de ajudar a jogar a lata de lixo em chamas no carro de polícia, eu fui um dos muitos que insultei os "porcos", como eram chamados os policiais que coletavam o dinheiro para proteção.
Vocês tinham noção do que estavam fazendo, de que a rebelião seria histórica?
Os então manifestantes pensaram no problema como um acontecimento isolado, uma época de aventuras. Ninguém poderia adivinhar que isso marcaria o nascimento de organizações pelos direitos dos homossexuais pelos EUA e seria comemorado anualmente na semana do orgulho gay. Depois de me tornar tesoureiro da Associação de Veteranos de Stonewall, por alguns anos marchei na frente da parada abraçado à Sylvia Rivera. Como tesoureiro, percebi, pagando contas, quem dizia que estava no Stonewall e aqueles que simplesmente só apoiavam.
Fale um pouco sobre a travesti lendária Sylvia Rivera…
Sylvia definitivamente era uma veterana. Uma ativista transgênero. Ela era a favorita de todos, especialmente dos bartenders por ser alcoólatra. Ela foi abandonada pelo pai, um venezuelano, e a mãe, uma porto-riquenha, cometeu suicídio quando tinha três anos.
Há vários boatos de que muitos "veteranos" não estiveram no levante…
Os clientes raramente se conheciam no Stonewall. Embora o bar não suportasse mais do que 100 pessoas, milhares dizem ter participado das manifestações. Outra pessoa de quem estou convencido de ter participado foi meu amigo, Danny Garvin. Nós almoçamos recentemente no Village para relembrar o fato. Danny era menor de idade e me lembro que tudo o que ele vestia era um poncho.
O que mudou desde então?
A eleição recente do presidente negro Obama mudou instantaneamente a aceitação pública de muitas etnias. Não consigo imaginar um cenário em que as atitudes públicas em direção aos gays e seus direitos mudassem tão rápido se talvez o papa admitisse que a bíblia é literatura e não fato; se cristãos e muçulmanos convertessem suas idolatrias em centros comunitários e não em construções sagradas; se os monoteístas tivessem cursos básicos em astronomia e ciência e se tornassem ateus.
Há muitos "se" para prever total aceitação. Mas, aos poucos, a mudança está ocorrendo. Ativistas legais estão demandando que leis progressistas sejam escritas. O oponente mais eficaz à religião é a arte: música, escultura, arquitetura, poesia, teatro – e não as ciências sozinhas. Os dez mandamentos cristãos têm preceitos fracos, ineficientes para o século XXI. Infelizmente, não estamos perto de alcançar as metas da declaração universal dos direitos humanos de 1948, e as leis do rei Hammurabi, de 1740, contra julgamentos injustos, tortura e escravidão. Aos poucos, o progresso vai continuar.