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Noiv@s sem altar

No final do ano recebi um convite de um casal de amigas queridas para ir à “celebração do amor” delas: elas vão se “casar” agora no começo do ano. Foi impossível não lembrar quase instantaneamente de várias cenas e debates.

Vamos às cenas. Um casal de rapazes na faixa dos 30 anos celebrando sua união numa sede meio pobre de ONG. Lembro deles e dos convidados muito emocionados e de um gurizinho que talvez tivesse uns dois anos, filho biológico de um deles, vestido de gravatinha para ver o “casamento” dos pais. Casais de garotas: a mão de uma delas, tremendo, segurava a mão da “madrinha” embaixo da mesa enquanto meu amigo lia o texto da declaração de convivência homoafetiva a ser registrada em cartório.

Presenciei choros emocionados, trocas de alianças, mães acompanhadas de suas namoradas sendo testemunhas do “casamento” do filho ou da filha, a mãe idosa que foi “madrinha” da filha, famílias inteiras e diversas reunidas, as taças de champagne cruzadas, o casal de rapazes jogando buquês no salão apertado da ONG, o arroz jogado na porta do prédio depois da saída de um casal de dykes e suas convidadas e convidados. Uniões cujo ritual foi celebrado no bar do Largo do Arouche, no bar do Itaim, no salão de festas alugado que deu lugar a uma celebração presidida por uma sacerdotisa da umbanda, no salão de festas da periferia.

A moça entra no salão lotado vestida de noiva – sonho que o ex-marido não lhe permitiu realizar – conduzida por uma amiga, entendida “de presença”. Depois de passar entre os convidados, chega à frente da mesa decorada onde meu amigo – um homem trans – ia ler a declaração de convivência. Sua companheira a esperava vestida de fraque, recebeu-a beijando suas mãos e depois se ajoelhou a seus pés para colocar a aliança. Outro: o casal de senhores, mais de trinta anos de convivência, que vieram a São Paulo só para assinar um documento e trocar singelos beijos na testa. Em outro, ainda, mães e irmãos choravam se reconhecendo na emoção da filha ou irmã.

Quantos casais, vestidos das mais diferentes formas, convidando as testemunhas mais diversas criaram seus próprios rituais e recriaram os rituais mais convencionais? Quantas uniões foram formalizadas às vésperas da morte de um dos companheiros para proteger os direitos do outro? Quantos conflitos foram re-configurados a partir desses rituais? Quantos mais eu não presenciei ou não tive notícias?

Uma discussão relativamente acalorada se instala toda vez que se fala em “casamento entre pessoas do mesmo sexo”. As discussões são entremeadas por argumentos que falam de “antinaturalidade”, outros em favor da formalização de “direitos iguais” e protestos dos que acham que isso resvala numa adesão a “valores heterossexuais decadentes” e numa “normalização da homossexualidade”.

De minha parte, não acho que todas as situações a que me referi aqui estejam contidas na linguagem jurídica dos direitos, embora remetam a ela. Mas também não pactuo com qualquer teoria política radical – tanto faz se auto-proclamar freudo-marxista ou queer – que seja incapaz de notar o que há de transformador ou de subversivo em tudo isso.

Não, não se trata de implodir estruturas. Não, nada vai acabar só porque dois homens que viveram juntos por mais de 30 anos trocaram beijos na testa após assinar um documento que atesta a existência dessa relação ou porque uma travesti e seu “marido” puderam registrar sua história juntos. Penso que todas as coisas das quais falei aqui reinventam convenções, inscrevendo nelas suas diferenças. Ao fazerem isso, sem dúvidas, deixam suas marcas.

Acho que o reconhecimento de uniões não precisa ser a principal, e menos ainda a única, reivindicação do movimento. Nem acho que as “relações estáveis” devam ser vistas ou visibilizadas como uma forma melhor ou ideal de levar a vida. Mas, me cansa um pouco quando alguém atribui uma essência qualquer, algo que necessariamente estaria relacionado, a lésbicas, sapas, entendidas, bis, gays, heterossexuais, travestis, trans ou a quem quer que seja. Não importa se a tal essência é de “bonzinho” ou de “mauzinho”, se a intenção é conservadora ou pseudo-libertária. E você, o que acha?

P.S. – Primeiro, um 2008 maravilhoso pra todas nós! Este texto é dedicado às amigas citadas no começo e ao meu amigo casamenteiro, cuja “amada” pegou o buquê de uma das noivas num ritual multiplamente abençoado. As cenas mencionadas são parte de um trabalho desenvolvido pela Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo desde 2003. Para saber mais sobre as uniões e quebrar alguns mitos, há uma pesquisa sobre os primeiros 106 casais que registraram uniões disponível aqui:

* Regina Facchini é antropóloga e escreve quinzenalmente no Dykerama.com

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