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O muito bom e o muito ruim

Acho que nós, homossexuais, vivemos numa época interessante. Como tudo nesse século, a questão do respeito pela nossa existência atinge extremos como não parece ter feito antes. De um lado os homofóbicos soltam frases difíceis de acreditar, como “a prática homossexual é um pecado que brada aos céus por vingança”.

Li, completamente fascinada, o arrazoado de um ser que se diz cristão defensor da família argumentando que a “parada do orgulho dos homossexuais” (ele não registrou as outras minorias) acontece publicamente porque nossa sociedade está tão tomada pelo pecado (roubo, sexo, ateísmo) que até mesmo seres “intrinsecamente desordenados” como nós têm liberdade para andar à solta pelas ruas.

Imagino que este nobre pai de família gostasse que nós fôssemos todos presos, espancados e torturados? Para que o demônio saísse de nós e as cidades ficassem limpinhas?

Segundo ele, “a conclusão óbvia é que a promoção de tal `parada´ está provocando a cólera de Deus, atraindo assim terríveis castigos para nossa cidade”.

Certo. É culpa nossa, por exemplo, que haja políticos e empresários roubando bilhões dos cofres públicos e pagando à justiça descaradamente para serem soltos – quando finalmente são presos. É isso mesmo, Deus colocou o Daniel Dantas na Terra como castigo pelos gays andarem de mãos dadas pela avenida Paulista. Tudo bem que o escorregadio empresário more no Rio, mas vale o princípio…

Ou será que o castigo divino lançado a São Paulo é o trânsito? Deus colocou nos paulistanos a mania de andar de carro, somou-a a melhores condições econômicas para que muitos milhões de pessoas pudessem financiar seus veículos, povoou nossa administração de políticos que não conseguem pensar em longo prazo sobre questões de transporte para que todos sofrêssemos no inferno caótico de ruas paradas – tudo isso por conta de a capital paulista sediar uma das maiores paradas do orgulho lgbt do mundo. Ou porque eu tenho uma namorada em vez de um namorado. Não faz todo sentido para você?

O que eu acho incrível é um pensamento tão completamente medieval como esse persistir ainda hoje, tantos séculos depois de a Santa Inquisição (que de santa só teve o nome) ter usado e abusado dessa mesma estratégia de criação de bodes expiatórios para matar na fogueira e pela tortura aqueles muitos milhares de “hereges”, inclusive os “sodomitas”.

Se Deus gostasse do extermínio dos diferentes, as guerras e genocídios que acontecem no mundo inteiro – sempre por esta razão, note-se – seriam, dentro dessa lógica primitiva de castigo e recompensa, premiadas com lindos paraísos terrestres, não é mesmo?

Mas essa nossa época fascinante também tem um outro extremo da questão do respeito pela diversidade: juízes e mais juízes estão dando sentenças a favor da família homossexual e do respeito por todos os cidadãos, independentemente de orientação sexual ou identidade de gênero.

Fico emocionada toda vez que recebo notícia de que um magistrado permitiu que um casal de gays adotasse uma criança, uma lésbica fosse incluída na cobertura do serviço de saúde de sua companheira, lésbicas e gays tivessem suas uniões estáveis reconhecidas pela Justiça, um transexual fosse reincorporado a seu emprego sob sua nova identidade.

O mais maravilhoso dessa onda de respeito é que tem acontecido em todos os estados do Brasil, provocada por juízes de diferentes varas, em resposta a litígios os mais variados. Esses profissionais estão contrariando a interpretação tradicional de nossas leis e ousando emitir sentenças corajosas, de claro reconhecimento da humanidade dos homossexuais e transgêneros.

Eu fico mais emocionada ainda quando paro para pensar nesses juízes, que devem em sua maioria ser heterossexuais com identidades de gênero comuns, que provavelmente estudaram em faculdades tradicionalistas como costumam ser as de Direito, que trabalham dentro das instituições para lá de conservadoras do Legislativo, que não têm nenhum benefício financeiro a ganhar pelas suas posições e ainda assim ousam ir contra a corrente e estabelecer novos parâmetros de justiça.

Esses profissionais estão com certeza agindo guiados pela sua consciência, permitindo que seu senso de justiça prevaleça sobre as tradições. Eles olham para as pessoas que são trazidas às suas salas de julgamento e vêem apenas pessoas, sem qualquer problema intrínseco por não pertencerem à maioria heterossexual.

Que essas sentenças sejam proferidas por profissionais acostumados a ver toda a gama de barbaridades que os seres humanos conseguem praticar deveria ser um indício, para a turma dos olhos bem fechados, de que o julgamento prévio não corresponde à realidade.

Juízes para lá de acostumados a detectar desvios de conduta não consideram que gays, lésbicas e transgêneros cometam desvios por princípio, por conta de sua natureza.

O mais impressionante para mim é que essa demonstração de consciência aconteça lado a lado com as declarações medievais que ouvimos de todos os cantos fundamentalistas a nosso respeito. Que todo um grupo de profissionais se comporte com dignidade e lisura, agindo em benefício dos outros sem qualquer ganho próprio, no mesmo instante em que ficamos sabendo das maracutaias mais deslavadas com fortunas públicas.

Eu adoro esses juízes! E adoro que estejam mostrando, com muito menos estardalhaço que os homofóbicos, os desonestos, os sem princípio, como é que se pratica o bem.

Vida longa e próspera a Vossas Excelências!

* Laura Bacellar foi a editora responsável pelas Edições GLS e é autora de alguns contos e artigos tendo as lésbicas como tema.

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