Com a morte de José Saramago o mundo ficou mais careta e mais hipócrita. Saramago é um dos raros, que mesmo premiado e reverenciado no mundo inteiro nunca se tornou mais conservador ou polido. Da suas opiniões nunca arredou pé.
O meu primeiro contato com a obra do escritor português foi por acaso. No meu aniversário, acho que fazia uns 22 anos na época, ganhei de presente o conto "A ilha". Grande metáfora a respeito do homem. Sempre conquista, mas nunca está satisfeito. Quer sempre mudar, mas não sabe o que. É a si mesmo. Mas sempre mais fácil enxergar o outro. Um pequeno livro de grandes significações.
Alguns anos depois me aventuraria em "O evangelho segundo Jesus Cristo". Nesta obra descobri definitivamente a peculiaridade de Saramago. O fluxo de consciência a prosa é singular. Existe gente que tenta copiar, mas ficam sempre chatos. De inicio estranhei, principalmente a sua pontuação, tão saramaguiana.
Todas as suas obras são políticas. Principalmente os ensaios: sobre cegueira e sobre a lucidez. Se no primeiro as pessoas estavam cegas e mesmo com a visão continuavam a não ver nada, no segundo há uma overdose de lucidez. E as pessoas resolvem se rebelar contra o sistema dito democrático. Como? Usando a grande arma vomitada pelos tais defensores da democrácia: o voto. Relegam os políticos ao nada e passam a viver sob a auto-gestão. Bom demais…
Me apaixonei por Saramago não apenas pela sua obra literária. Esse foi o nosso primeiro contato. Fiquei admirado com a sua posição em relação às religiões, principalmente a católica. E na política do mundo real, quando ele, do alto do seus 80 anos disse em alto e bom som: "Berlusconi é um vômito".
Ou quando lhe perguntaram: o senhor ainda continua a apoiar o regime cubano, mesmo ele tendo matado um monte de gente e manter pessoas presas. Ele responde: Você poderia me falar assim: o senhor permanece católico, mesmo depois das inquisições terem matado milhões de crianças e famílias inteiras. Mestre.
O mundo fica mais careta. Quem mais irá criticar o que há de ser criticado dessa maneira? A Stephanie Meyer? Duvido muito. Hoje estamos rodeados do senso comum. Do conservadorismo de todas as maneiras. Os grandes críticos do sistema vão um a um. No ano passado nos deixou Levi Strauss, hoje Saramago… É, hoje é um dia triste.
Saramago parte e nos deixa a sua despedida. Caim. Muito sintomático. A sua última crítica a instituição mais canalha do mundo. Também foi Saramago quem teve coragem de dizer que "Deus é a criatura mais maligna já criada pelo mundo". Pagou alto preço. Mas nunca voltou atrás ou pediu desculpas. Em outra entrevista, Saramago foi questionado se não tinha exagerado em ter chamado Deus de filho da puta em seu ultimo livro, Caim, e também de cruel e rancoroso. Ele responde: Olha, filho da puta pode ser que eu tenha me excedido, pois Deus não tem mãe, agora, rancoroso e cruel, basta ler cada pagina…
Pra fechar coloco uma frase de sua obra mais famosa e polêmica, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que para mim sintetiza boa parte do pensamento de Saramago:
"Perdoai homens, ELE não sabe o que faz"