Parecia uma piada de mau gosto de dia da mentira. No dia primeiro de abril, a imprensa internacional começou a propagar uma notícia que dizia que autoridades da Chechênia estavam enviando homens entre 16 e 50 anos a campos de concentração. O crime: eles são homossexuais. Segundo o jornal russo Novaya Gazeta, mais de 100 pessoas foram espancadas e eletrocutadas, e pelo menos quatro morreram nesses centros de detenção. Essa tortura seria a institucionalização de uma prática antiga na região do Cáucaso, o crime de honra, medida que serviria para “lavar a vergonha” de uma família. Mas, para o governo checheno, tudo não passa de conspiração. Um porta-voz declarou que “mesmo que existissem gays na Chechênia, a polícia não teria problema com isso, pois as próprias famílias deles se comprometeriam a enviá-los a um lugar de onde não seria possível retornar.” Isso mesmo. Não só a república foi acusada de um crime humanitário grotesco como seu porta-voz fez pouco caso e ainda disse que famílias chechenas matam seus filhos gays. Acontece que não são as famílias, mas é o próprio governo da Chechênia que está liderando essa caçada, segundo grupos de direitos humanos como o Humans Rights Watch e a Anistia Internacional. Esses homens estariam sendo capturados para serem eliminados até o dia 26 de maio, quando começa o ramadã, mês sagrado do islamismo. Não que o Islã, por si só, tenha algo a ver com a morte em massa de pessoas, é preciso frisar. Trata-se de mais um caso em que religião é usada para fins políticos malignos. O cristianismo também sofre com isso. Em Uganda, país muito influenciado pelo fundamentalismo evangélico americano, o governo determinou que ser gay pode render prisão perpétua (fora que Rússia e Brasil são dois dos países mais perigosos do mundo para homossexuais, e ambos são majoritariamente cristãos). A possível iminente matança foi condenada por nações importantes, como Reino Unido e Austrália. Os Estados Unidos se limitaram a declarar, por meio de seu embaixador na ONU, que, “se for verdade, tal violação aos direitos humanos não pode ser ignorada, e as autoridades chechenas precisam investigar imediatamente o ocorrido e tomar as medidas necessárias para prevenir abusos futuros.” Um blablablá mais em cima do muro do que gato insone, ainda mais que são as próprias “autoridades chechenas” que estão sendo acusadas. A posição da Rússia foi além. Ela deu respaldo ao governo local, limitando-se a dizer que não foram encontradas evidências a respeito dos tais campos. Bem, a Chechênia é um lugar isolado, montanhoso e com um cenário político que desfavorece o trabalho de ONGs e da imprensa livre. Podemos acreditar na posição oficial do governo e fim de papo. Ou levar em conta as acusações – ainda mais quando há alguns fatos na mesa, como o de que o presidente checheno tem costas quentes. Mas, primeiro, como isso foi acontecer na Chechênia? – lugar que ocupou o noticiário nos anos 90 a ponto de ganhar piadas óbvias por causa de seu nome (às vezes acompanhada de outro figurão da época, o Kosovo). CHECHÊNIA QUEM? A Chechênia é uma das menores e mais barulhentas das 22 repúblicas que integram a Rússia (aliás, aos nerds de geografia: este vídeo explica a composição do país, que ainda tem oblasts, krais, cidades federais.). Um pedaço de terra de 17 mil km quadrados (menor que Sergipe), sem saída para nenhum dos dois mares que banham o Cáucaso, o Negro e o Cáspio. Até o século 15, ela ficou no fogo cruzado entre árabes e mongóis, quando Ivan (aquele mesmo, o Terrível), iniciou a expansão do czarismo. Persas e russos e, depois, turcos e russos guerrearam pelo domínio dessa região estratégica. Diversas religiões conviviam em relativa harmonia, sem predomínio claro de uma sobre as outras, mas a opressão da cristã Rússia ao longo dos séculos ajudou o islamismo a ser mais popular que outras fés – uma forma de resistência cultural dos povos da região . A área enfim foi conquistada no século 19, mas a Revolução Russa, em 1917, abriu uma brecha para a Chechênia e outras repúblicas vizinhas, Inguchétia e Daguestão, declararem independência e formarem a República Montanhosa do Norte do Cáucaso. O país teve vida curta, e em 1920 foi engolido pela fúria soviética. Em seu governo (1924-53), Stálin deportou milhares de chechenos e deu suas casas e propriedades a russos. Quando os chechenos voltaram, criou-se um problema visível até hoje (algo semelhante aconteceu na Crimeia, também na conta de Stálin). Em 1991, a União Soviética implodiu. O Cáucaso voltou a uma nova fase de bagunça. A Chechênia declarou independência, mas em 1994 os russos invadiram o território em uma guerra de 100 mil mortos. Em 1999, a Segunda Guerra da Chechênia estourou. Os russos tomaram a capital, Grozny, e diversos atentados terroristas ocorreram nos anos seguintes. O conflito beneficiou politicamente o novo e desconhecido chefe de governo russo, Vladimir Putin. No último dia daquele ano, o presidente Boris Iéltsin, enfraquecido por um cenário de incerteza econômica, instabilidade política e denúncias de corrupção (tudo embalado em uma saúde debilitada por litros de vodca), renunciou. Putin assumiu interinamente, reprimiu os chechenos e recuperou a economia com a ajuda do aumento do preço do petróleo (sempre ele). A popularidade lhe rendeu a vitória nas eleições de 2000. E desde então o homem está aí. Em 2007, Putin indicou Ramzan Kadyrov para a presidência da Chechênia. A república rebelde passou a ser uma ilha de estabilidade nas montanhas do Cáucaso. Grozny foi reconstruída com investimentos vultosos de Moscou. Mas o preço foi pago em direitos humanos. Kadyrov é um sujeito afável. Ele é acusado de chefiar uma milícia que sequestra, tortura e mata separatistas chechenos. Ao mesmo tempo, quer impor preceitos da sharia, a lei islâmica, na região. Putin tolera isso, segundo analistas internacionais, para evitar mais dor de cabeça na Chechênia, afinal ele tem um suposto aliado no comando, em vez de um político separatista. Além disso, manter um governante que segue as leis religiosas mais tradicionais seria uma forma útil de cooptar terroristas, um problema recorrente na região. Mas essa parceria acabou se tornando uma ameaça a Putin, porque Kadyrov está cada vez mais poderoso. Cerca de 80% do orçamento da república vem do Kremlin, e muito acaba no bolso de seu presidente: Kadyrov tem um zoológico particular e um Lamborghini de 1 milhão de euros (a joia de uma frota de 50 carros de luxo). Até aí, corrupção é um assunto em que é difícil se destacar na Rússia, então ele nem chamaria muita atenção. Mas Kadyrov é um cão que se livrou da coleira. Em 2015, Boris Nemtsov, um político oposicionista, foi assassinado em Moscou, literalmente ao lado do Kremlin, por um homem ligado a Kadyrov. O episódio pegou muito mal para Putin, porque ele já estava sofrendo sanções devido à guerra com a Ucrânia (e a morte de um líder da oposição não era lá um sinal de uma democracia pujante, digamos assim). Fora que o atentado aconteceu sem que Moscou autorizasse, ou sequer soubesse, do plano. Mas o presidente russo não repreendeu seu parceiro. Quando um político siberiano disse que Kadyrov era uma desgraça para a Rússia, seus homens bateram na porta do homem e disseram que se ele não se retratasse, poderia ter o mesmo fim que Nemtsov. Coisa fina. O presidente checheno já disse que qualquer autoridade que se aventurar a entrar em seus domínios sem permissão será assassinada. Ele matou todos que se opuseram ao seu governo. Assumiu o controle da empresa petroquímica estatal da Chechênia. Encheu os próprios cofres com dinheiro de Moscou. E agora quer, aparentemente, exterminar os gays da república que comanda. Ao agir à revelia do Kremlin, Kadyrov mostra, segundo uma análise do site Vox, que é possível peitar Putin e se dar bem – algo do qual o líder russo pode se arrepender no futuro se não controlar seu pequeno ditador. Enquanto isso, grupos se mobilizam na internet para denunciar os crimes (você pode assinar a petição do Avaaz aqui e ver a campanha do Humans Rights Watch aqui). No Instagram, a campanha #kiss4LGBTQrights pede que as pessoas postem fotos se beijando e marquem o Kremlin como localização (o beijaço virtual foi uma zoeira politizada e moralizadora, diga-se de passagem). Putin disse na sexta (5) que irá ordenar uma investigação sobre os “rumores sobre o que está acontecendo com as pessoas de orientação não-tradicional no norte do Cáucaso”. Ao usar termos assim, já se pode esperar o que virá da tal investigação. Mas Kadyrov segue não ligando a mínima, aparentemente. Ele insiste que não há “pessoas de orientação não-tradicional” na Chechênia e investe em sua carreira midiática. Seu perfil no Instagram (@kadyrov_95) tem 2,7 milhões de seguidores (quase o dobro da população da república). No ano passado, ele estrelou um reality show cujo vencedor seria seu novo assistente. Os candidatos tiveram que enfrentar provas como vender sorvete nas ruas de Grozny e ajudar a realizar uma cirurgia cardíaca, além de enfrentar atividades físicas como arco e flecha, hipismo, corrida e boxe com o próprio Kadyrov. O programa tinha a clara intenção de suavizar a imagem do líder e expandi-la para além do Cáucaso, tornando-o um nome de alcance nacional. No programa, ele declarou: “As pessoas acreditam na imagem que os liberais fizeram de mim, que sou assustador, que mato quem fala qualquer coisa de mim, que vou prendê-los em calabouços e esfaqueá-los. Isso foi inventado por inimigos do povo”. O homem pode fazer campos de concentração para gays, algo que não se via na Europa desde Hitler. Mas ao mesmo tempo entra para o clube dos políticos/astros de reality show, fenômeno que vimos acontecer em 2016 em Washington (e em São Paulo). A realidade no Cáucaso, não tão distante assim, não precisa ser ignorada. O que está acontecendo na Chechênia, tão cruel assim, não pode ser ignorado. Reportagem de autoria de Felipe van Deursen publicado no site da revista Super Interessante