Apesar de não ser um advogado apaixonado por direito de família, essa é uma área muito popular do direito, que invariavelmente afeta a vida de todos nós, afinal todo mundo um dia já namorou, já se "amigou" com outra pessoa e ficou na dúvida sobre os direitos decorrentes dessa relação.
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Para além da curiosidade, faz todo sentido se preocupar com seus direitos e seus bens. Quem nunca ouviu falar de um amigo que investiu tempo, dinheiro e carinho numa relação que um dia acabou e o amigo saiu com uma mão na frente e outra atrás? É natural bater um certo medo de se envolver e "perder seu tempo". É claro que, com o término, a gente sempre leva algo da relação. E não são só as memórias. Dependendo do tipo de relação, pode ser que você tenha direito sobre alguns bens.
Depois de ser procurado por muita gente com dúvidas sobre as implicações da união estável, do casamento e as diferenças entre os dois, acho que vale a pena gastar um artigo pra falar mais uma vez sobre o tema. No artigo de hoje, quero explicar tudo isso e deixar bem claro, acima de tudo, que o diálogo é a melhor forma de lidar com o tema.
Primeiro, vamos entender qual a diferença entre união estável e casamento. As duas coisas são formas de constituir família. Enquanto o casamento é uma forma mais "oficial", a união estável é uma situação de fato. Quer dizer, mesmo que você não vá ao cartório registrar seu contrato de união estável, você pode estar vivendo em uma. Já com o casamento isso não existe. Se você não assinar aquela papelada, você não pode ser considerado casado.
Em relação aos direitos patrimoniais, a união estável, quando não registrada, dá quase os mesmos direitos do casamento em regime de comunhão parcial de bens, isto é, todos os bens conquistados pelo suor do casal durante a união são de propriedade de ambos e só podem ser vendidos se os dois estiverem de acordo. Quando o relacionamento acabar, cada um tem direito a metade desses bens.
É importante entender que a lei presume que todo o patrimônio adquirido na constância da união estável foi produto do suor dos dois companheiros, portanto não importa se você fazia tarefas domésticas ou se você era quem saia de casa para fazer dinheiro. Os dois contribuiram, ainda que de forma distintas, pelo bem da família.
É muito curioso notar que muita gente nem sabe que tem direito a metade do patrimônio construído durante a união e acaba saindo, de fato, com as "mãos abanando", o que considero muito injusto, afinal se não fosse pelo "dono de casa" que cuidava do lar e dava apoio emocional, tenho certeza que aquele que investiu na carreira e fez dinheiro não teria construído tamanho patrimônio.
Se o provedor fosse pagar pelos "serviços domésticos", imagine só quanto não gastaria? Hoje em dia não é nada barato somar gastos com empregada doméstica, psicólogo, contador (ou alguém para cuidar das finanças), personal stylist, babá dos filhos, etc. Ignorar o fato de que o "dono de casa" faz as vezes de todos esses profissionais é um desrespeito imenso à auto-abdicação desta pessoa pelo casal, pelo projeto mútuo de vida. Por isso, a lei força uma igualdade entre as partes, mesmo que elas não provem sua contribuição na construção do patrimíonio comum.
Além disso, o ex-companheiro também pode pleitear na justiça o direito a pensão alimentícia, exatamente em respeito ao dever de apoio mútuo mencionado no parágrafo acima. Se o alimentado, porém, constituir nova família, perde o direito à pensão. Para obtê-la, ainda, deve provar que precisa dessa "ajuda de custo" e que não tem condições de se bancar – ou pelo menos bancar o mesmo estilo de vida anterior – sozinho.
Caso tenham tido filhos, os ex-companheiros também podem pleitear o direito a guarda dos menores, ou mesmo o direito a regulamentar as visitas periódicas, de modo que o término entre os pais – não importa se adotivos ou biológicos – não atrapalhe o desenvolvimento das relações afetivas com seus filhos.
Não apenas com o término surgem direitos. Com a morte de um dos companheiros ou de um dos cônjuges, também surgem direitos patrimoniais, que é a transferência do patrimônio do "de cujus" para o sobrevivente. Quando se é casado ou quando se tem registro em cartório da união estável, poupa-se muita dor de cabeça, pois já existe a certeza de que o casal consitutia família.
Já quando o casal vivia na informalidade – em união estável de fato – é preciso ir para a Justiça, entrar com ação de reconhecimento e dissolução de união estável. E aqui acontecem aquelas brigas homéricas com familiares distantes que sequer aceitavam a homossexualidade do morto. Para evitar o desgaste e a baixaria de brigar com esses parentes distantes, a melhor coisa é registrar a união estável em cartório.
A ação de reconhecimento e dissolução de união estável é sempre muito desgastante para a parte, que precisa comprovar por meio de documentos e testemunhas que viveram juntos e dividiram uma vida. Isso pode ser um problema, principalmente para casais gays em que um dos cônjuges ou companheiros está dentro do armário. O problema também está presente nas relações entre idosos dentro do armário, o que não é nada raro, já que, vindo de tempos mais intolerantes, constituiram suas uniões camufladas para fugir da discriminação. Como um dos requisitos da união estável é a publicidade, isto é, que a relação não seja escondida, muitas vezes gays podem ser injustiçados após suas uniões estáveis, durante a tramitação do processo.
Para evitar essas injustiças, infelizmente não existe milagre. A melhor saída para os casais é manter um diálogo franco e horizontal. Ninguém é obrigado a compartilhar o patrimônio, se não quiser e, para isso, existem outros regimes de bens (como a separação total). Ao mesmo tempo, não é justo que ninguém saia totalmente desamparado com o fim do relacionamento – seja por causa do rompimento, seja por causa da morte. É melhor deixar a união registrada, prevenindo-se de quaisquer fatalidades, do que passar pelo desgaste e pelas incertezas do Judiciário.
Thales Coimbra é advogado especialista em direito LGBT (OAB/SP 346.804); graduou-se na Faculdade de Direito da USP, onde cursa hoje mestrado na área de filosofia do direito sobre discurso de ódio homofóbico; também fundou e atualmente coordena o Geds – Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade da Faculdade de Direito da USP; e escreve quinzenalmente sobre Direitos nos portais A Capa e Gay Brasil. www.rosancoimbra.com.br/direitolgbt