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O reino das mulheres

Quando comecei a perceber que o mundo favorecia mais os meninos que as meninas (lá bem cedo na minha existência de baby sapata), passei a imaginar também como seria se o contrário ocorresse. Como seria uma sociedade onde as mulheres mandassem?

Na minha avidez por leitura, dei com várias fantasias que iam por este caminho, como os mundos de amazonas de Marion Zimmer Bradley. (Antes de escrever aquela longa chatice hetero chamada “As brumas de Avalon”, Marion imaginou realidades alternativas de mulheres fortes, guerreiras e lésbicas bem mais interessantes para mim…) Essas personagens não abaixavam a cabeça para ninguém e puxavam a espada quando a coisa engrossava. Passei a infância querendo aprender esgrima…

Fiquei fascinada também quando li “O cálice e a espada”, de Ryane Eisler, uma pesquisa histórica que conta como o mundo foi diferente lá no Neolítico, antes do início do patriarcado e da dominação masculina. Embarquei na imaginação para tentar reconstruir nosso passado de igualdade e parceria entre os sexos, vendo as anciãs sendo reverenciadas nas cavernas de nossos tetravós.

Mas recentemente dei com o livro “O reino das mulheres”, de Ricardo Coler (São Paulo, Planeta, 2008) que descreve um matriarcado hoje, existente e saudável num rincão da China. É uma leitura que recomendo a quem queira experimentar ver os papéis de gênero – aquelas coisas que a nossa sociedade define como eternamente femininas ou masculinas – totalmente embaralhados, diferentes, inesperados. Ou seja, muito interessante.

O autor ficou fascinado por este lugar quando o visitou pela primeira vez e quis voltar lá para conferir, tendo depois escrito o livro. É uma região muito bonita, de algumas vilas à beira de um lago não muito distante da fronteira com o Tibete, habitada por uma minoria chamada Mosuo.

Essa gente, diferentemente do resto mundo, vive sob o claro comando das mulheres. Lá só pode ser proprietária de terras ou casas quem é do sexo feminino. A casa familiar, que chega a estender-se como uma vila inteira de casinhas em torno de um pátio central, é sempre chefiada por uma mulher.

E essa chefia feminina não é nominal apenas, mas escancarada. A matriarca dá ordens com firmeza todos os dias e seus parentes homens correm para atendê-la, sem senões ou discussões. A gente tem certeza disso ao ler a obra porque o autor ficou um tanto desconfortável pela forma como os homens são tratados, sendo ele também logo considerado um reles representante de seu sexo nas conversas com as chefonas do lugar.

Mas não é só isso. As meninas, quando chegam à adolescência, ganham uma casa só para elas, com chave, onde podem receber os parceiros sexuais que bem entenderem. Os meninos não têm esse privilégio, morando sempre com suas mães ou a matriarca de sua família (que pode ser a avó, a tia, a irmã).

Quando uma família tem pouco dinheiro, manda só as meninas estudarem. Quando aparece uma oportunidade de viagem ou bolsa de estudos ou experiência diferente, uma garota é enviada. As mulheres são consideradas mais capazes e inteligentes, mais práticas e responsáveis.

E por que os homens não se incomodam de ser tratados como subalternos? Apesar de o governo chinês ter tentado impor uma organização mais tradicional no lugar, com terrenos em nome dos homens, a mudança simplesmente não pegou. Assim que os guardas vermelhos forma embora, todos os homens voltaram para as casas de suas mães e esqueceram essa história de serem os chefes das famílias.

É que a sociedade desse lugar apresenta algumas vantagens grandes para homens e mulheres, sendo aparentemente muito mais eficiente na solução de problemas recorrentes entre seres humanos.

Por exemplo, lá ninguém casa. Os homens vão atrás das mulheres e elas os recebem ou não, de acordo com seu interesse e vontade, sem qualquer ligação com status, sobrevivência, cuidados com a casa, afeição dos familiares, expectativas. Sexo é totalmente separado de vida em comum, e acontece apenas enquanto há interesse entre as duas pessoas. (Não é à toa que os Mosuo não quiseram saber de casamento à moda patriarcal quando entenderam que precisariam ficar com a mesma mulher a vida inteira ou sofrer perseguições quando se envolvessem com amantes…)

Mais ou menos como as nossas uniões homossexuais, que não sofrem pressão social para continuarem quando os dois ou as duas não sentem mais vontade de permanecer juntos, entre os Mosuo as relações (hetero) são também secretas e pouco incentivadas. Alguns casais se encontram por anos a fio, mas o homem sempre volta para a casa da mãe no dia seguinte e é lá que ele trabalha e contribui para o bem estar de seus parentes. Um homem tem muito mais ligação com seus sobrinhos do que com seus filhos. Aliás, ninguém sabe com certeza quem é o pai de cada criança, já que as mulheres recebem os homens que bem entendem, sem qualquer alarde.

Os Mosuo disseram ao autor do livro que lá não há homossexuais, mas nem ele nem eu acreditamos, já que isso seria uma anomalia da humanidade. O mais provável é que não falem sobre isso, e de qualquer forma parece ser facílimo para as mulheres manter relacionamentos entre si, visto que elas têm privacidade como direito seu e desenvolvem amizades super afetuosas entre si.

A leitura desse livro não confirmou nenhuma de minhas fantasias ou imaginações, mas mesmo assim me deliciou pela diferença do esperado. Eis uma sociedade onde as mulheres mandam e têm mais privilégios, mas elas trabalham feito loucas, em especial cuidando da casa e da comida. As mulheres não ficam no alto de cargos honoríficos, mas na beira do fogão!

O matriarcado ali significa sim muito menos violência, muito menos desrespeito por todas as pessoas, muito mais bom humor no dia a dia como previram muitas feministas. Nenhuma criança ou idoso jamais é abandonado, porque todos permanecem na casa da mãe ou matriarca, cuidando dos nenês e dos velhos da família em conjunto. Ninguém se sente solitário, já que sabe sempre a que família pertence. Mas o fato de as meninas terem mais oportunidade do que os meninos não deixa de ser uma injustiça e parece deixar os homens um tanto apáticos e sem iniciativa, exceto nas aventuras sexuais.

O livro não tem nada a ver com lesbianismo, em suma, mas é uma visão fascinante de uma outra organização de gêneros, uma sociedade onde os pais são tão pouco importantes que nem sequer são conhecidos. Recomendo para as moças que, talvez como eu, gostem de conhecer ou imaginar alternativas diferentes ao que vemos todos os dias.

* Laura Bacellar é escritora e editora, atualmente responsável pela Editora Malagueta – www.editoramalagueta.com.br, a primeira a publicar apenas livros para mulheres que amam mulheres.

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