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Para desembargador divergente, discriminação contra casal gay foi para o proteger

Nesta semana, ganhou destaque na mídia a condenação da dona de um restaurante em São Vicente, no litoral sul paulista, que discriminou um casal de gays que trocava carícias em seu estabelecimento. Pelo que foi descrito no julgamento do caso, ela repreendeu o casal por causa de um selinho, mandando os dois se afastarem, para não "queimá-la", pois aquele local naquela hora era frequentado por "peão".

No artigo desta semana, analisarei este caso e, a partir da constatação de uma crescente disposição da justiça paulista a condenar casos de discriminação homofóbica, quero chamar a atenção para as contradições que persistem nesta disposição. Longe de ser linear a contínua, como uma evolução matemática, os avanços da luta por reconhecimento de direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais são conquistas sempre em disputa que não nos permitem descansar.
 
No caso em análise, a proprietária do restaurante se defendeu afirmando que o casal estava se beijando de língua e que tudo que ela fez foi solicitar que se contivessem um pouco. Seu relato, no entanto, foi corroborado tão somente por uma de suas testemunhas, enquanto o casal de rapazes conseguiu arrolar testemunhas em maior quantidade e melhor qualidade. Tratavam-se de outros clientes que presenciaram a cena e não se sentiram ofendidos pelo afeto do casal, tendo inclusive ressaltado que o mesmo (o afeto) não passava de um selinho.
 
A defesa da ré, na verdade, não foi das mais felizes. Segundo o desembargador Alexandre Bucci, que relatou o caso, a agressora, enquanto proprietária de um restaurante (estabelecimento privado aberto ao público), até tem o direito de solicitar que casais "peguem leve". Mas isso não pode ser feito de forma discriminatória, isto é, pura e simplesmente em razão da orientação sexual ou da identidade de gênero dos clientes. 
 
Pelo entendimento do tribunal, portanto, um selinho não pode ser objeto de censura. Não ficou claro, no entanto, se um beijo de língua passaria dos limites, independentemente da sexualidade dos clientes. De todo modo, o ponto central no caso pode ser destacado pelas palavras do relator: Anote-se que a abordagem preconceituosa e discriminatória, feita de maneira discreta ou não, por si só, gera danos morais, ferindo a dignidade, a imagem e a honra dos autores, justificando plenamente o dever de indenizar.
 
Ao final do julgamento, a proprietária do restaurante foi condenada a pagar R$ 10 mil para cada um dos rapazes, mais custas e honorários do advogado deles. Chamou a atenção, no entanto, o voto divergente – coisa cada vez mais rara numa cultura de judicialização em massa. Segundo o mesmo, a proprietária não teria discriminado os rapazes, mas apenas os alertado para protegê-los (o que ele chamou de "um ato de proteção").
 
Quer dizer, para o desembargador Mauro Conti Machado parece razoável que, a fim de evitar a discriminação maior (o casal ser importunado pelos "peões"), a dona do restaurante promova uma discriminação menor (censurar o afeto do casal). É lamentável que alguém considere aceitável a agressão simbólica que é a censura à livre expressão da sexualidade de casais não heterossexuais para protegê-los de outras potenciais agressões. 
 
Isso por diversos motivos. Primeiro que sequer sabemos se os tais "peões" realmente investiriam contra o casal. Quantas vezes não nos surpreendemos com os gestos de tolerância e respeito vindos de pessoas que jamais imaginávamos? Segundo – e relacionado ao primeito – que a homofobia não tem cara e não tem diferentes graus. A homofobia que fundamentaria a possível agressão dos "peões" (que o juiz chamou de "pesoas incultas, toscas") é a mesma homofobia que fundamentou, na cabeça da proprietária, a suposição de que ela teria direito ou que seria melhor censurar o afeto gay.
 
A única medida que a agressora poderia ter tomado, e apenas se fosse necessário, seria impedir que os tais "peões" agredissem verbal ou fisicamente o casal, e para isso ela poderia dispor de um agente de segurança ou mesmo da polícia militar, afinal a integridade de seus clientes é sua obrigação legal. 
 
Felizmente ganhamos mais essa luta e devemos celebrar, mas não podemos de forma alguma fingir que não vimos o voto divergente do desembargador Mauro Conti Machado. Evidentemente não quero demonizá-lo, mas usar sua posição jurídica no caso como uma amostra de que a cultura de proteção a minorias sexuais – e que isso implica em não tolhê-las para protegê-las – ainda não está tão sedimentada quanto achamos. 
 
A mesma argumentação usada pelo desembargador está presente no discurso de ódio homofóbico que nega a adoção de criança por casais gays, nega o ingresso da nossa gente nas Forças Armadas e impede que sejamos integrados à sociedade. O movimento feminista já nos ensinou: não somos nós que devemos ser censurados e censuradas, mas são os nossos agressores que devem ser ensinados a não nos agredir.
 
Thales Coimbra é advogado especialista em direito LGBT (OAB/SP 346.804); graduou-se na Faculdade de Direito da USP, onde cursa hoje mestrado na área de filosofia do direito sobre discurso de ódio homofóbico; também fundou e atualmente coordena o Geds – Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade da Faculdade de Direito da USP; e escreve quinzenalmente sobre Direitos no portal A Capa.  www.rosancoimbra.com.br/direitolgbt
 

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