Acaba de sair pela editora Garamond o livro "O Rei Momo e o arco-íris: Homossexualidade e Carnaval no Rio de Janeiro", de autoria do antropólogo Fabiano Gontijo. Na obra – uma adaptação de sua tese de doutorado – Fabiano traça a história das bandas de carnavais do Rio de Janeiro com o foco nos gays dentro desse universo. Para o autor "o carnaval de rua desapareceu".
Fabiano Gontijo, 37, é natural da cidade Itaperuna, interior do Rio de Janeiro. Na entrevista ao site A Capa, ele revela que não gostava de Carnaval, mas "aprendeu a gostar". Durante a conversa, o antropólogo disse que "Carnaval e Parada Gay são coisas distintas", e ressalta: "eles têm formatos e propósitos diferentes".
O estudioso, formado mestre e doutor pela Escola de Estudos em Ciências Sociais na França, conta o surgimento das travestis e caricatas, com sua origem no Carnaval e no Brasil pré-Aids, que "sumiram depois da doença". "No Brasil pós-Aids surgem as drag queens, que já é uma outra história". Fabiano fala ainda sobre o poder que tem o Carnaval, de fazer heterossexuais terem experiências gays.
Confira a seguir esta interessante entrevista e descubra o Carnaval a partir de uma perspectiva gay e histórica.
Quando você decidiu transformar a sua tese em livro?
Terminei minha tese em 2000. Um dos membros da banca era o Peter Fry (autor do livro "O que é Homossexualidade"), famoso antropólogo e estudioso da homossexualidade, e ele falou pra mim: "Fabiano, você tem que publicar com urgência, se não ela vai ficar datada". Porque todo trabalho etnográfico tende a envelhecer muito rápido. Mas aí, me envolvi com outras coisas. A editora entrou em contato comigo e me deu um prazo para traduzir a tese [o original está em francês] e era tudo o que eu precisava.
Você gosta de Carnaval?
Aprendi a gostar, tinha pavor de Carnaval. Sou do interior do Rio de Janeiro e durante a minha infância não tive o costume de vivenciar o Carnaval. Mesmo porque, sou de uma cidade que teve um Carnaval de rua bastante famoso na década de 70, com blocos bem típicos e isso desapareceu. Nos anos 80, me mudei para o Rio e lá descobri o Carnaval. O que eu via pela televisão, agora via pela janela do prédio. Mas eu tinha horror daquilo, aquele monte de gente. Aí comecei a namorar um cara que adorava o Carnaval, ele era francês e só vinha ao Brasil para curtir essa festa. Ele era fascinado por aquela multidão. Então, fui obrigado a participar de um Carnaval com ele e esse foi o meu primeiro contato.
E a pesquisa, como surgiu?
Fui pra França em1990 estudar. Depois, quando tive que resolver sobre o que eu ia estudar para a minha monografia, escolhi os points gays do Rio de Janeiro, principalmente o território gay da praia de Copacabana, que era chamado pelo discurso local de ‘Bolsas de Copacabana’, em frente ao Copacabana Palace. Durante as observações que fiz, inevitavelmente nas entrevistas o Carnaval aparecia. As pessoas sempre falavam do Carnaval como um momento importante, inclusive as bichas evangélicas. É um mundo extremamente fascinante e liberal, que até então eu não conhecia. Aparentemente não havia limitação ali.
Isso foi em que ano?
94. Então, quando defendi a minha monografia que era sobre a ‘Bolsa de Copacabana’ em contraposição a Farme de Amoedo, mostrava que tinhamos dois grandes modelos de sociedade: um lado você tinha aquela diversidade típica dos anos 70 da Bolsa de Copacabana, onde se reuniam ‘mariconas’, ‘macho men’, ‘entendidos’, ‘bichas quá quá’, um universo decadente como o bairro de Copacabana. Do outro lado era aquela coisa mais homogênea, que era o bairro de Ipanema, as ‘barbies’ e mulheres bem femininas, e obviamente nada de travesti, transexuais. Eu notei que haviam dois brasis: um Brasil antes e um depois da Aids.
Como você dividiu isso?
Propus para o mestrado pegar duas imagens de extremo que chamei de imagem identitária. Peguei duas imagens extremas das relações de gênero no universo homossexual. Temos o extremo da masculinidade, que seria as barbies e os boys e, do outro lado, a versão mais feminina que seria a travesti. Então, no doutorado resolvi colocar o Carnaval como um ritual fundamental na construção da identidade.
Confrontei um pouco as teorias do Da Matta [Roberto da Matta, importante antropólogo brasileiro] que diz que o Carnaval é um grande rito de inversão, onde o Brasil fica nu, onde os homens se vestem de mulher, as mulheres de puta ou de santa. Os gays que eu observava não tinham essa inversão. As travestis não se tornam homem, os gays não se tornam mulheres, não há essa inversão.
Então, o que acontece com essas pessoas no Carnaval?
Observei que em diversas situações do Carnaval, fosse nos blocos, nas bandas de bairros, nas festas alternativas ou nos desfiles de escolas de samba, existe uma maior visibilidade e uma maior permissividade. A permissividade e visibilidade são, pra mim, a grande marca do Carnaval, enquanto ritual que ajuda na construção da identidade. Por exemplo, o baile das travestis que era o "Baile das bonecas". E aí vem a história de Madame Satã e aquela coisa toda. Foi a partir daí que se formou a identidade das caricatas, travestis… mas veio a Aids e acabou com tudo. Depois, surge outra identidade que são as drags queens, mas aí já é outra história.
Durante a sua pesquisa você conseguiu identificar em qual escola a pegação gay é mais forte?
No livro eu não falo de escola de samba. Nos anos 90, quando comecei a fazer a pesquisa, a escola gay por excelência era a Estácio, mas isso na época que eles estavam no grupo especial, estavam muito em voga. Tinham uma quadra, um bicheiro importante e de repente isso tudo foi por água abaixo, aí as bichas pararam de freqüentar. Depois da Estácio, a União da Ilha começou a ser muito freqüentada por gays, foi mais ou menos quando Milton Cunha estava a frente da escola. Aliás, ele foi muito importante para essa visibilidade gay. Milton era assumidamente gay e levava muitos gays para a União da Ilha, depois ele foi para a São Clemente.
Existe algum fator para atrair gays a uma escola de sampa?
Lembro-me de um ensaio que fui uma vez em Bangu, no Realengo, era um ensaio da Mocidade de Padre Miguel. Cheguei muito cedo e eu errei de ônibus, desci em frente a uma outra escola, que era a Unidos de Padre Miguel, entrei na quadra e estava tendo um fuá lá, não era ensaio, mas tinha uma bateria tocando. Lá, vi que tinha banheiro para travesti. Todo aquele trecho da zona leste do Rio, Realengo, a Padre Miguel é extremamente reconhecida por todos moradores, em geral como bairros extremamente gays. Logo depois, na União da Ilha, quando Milton Cunha estava lá, também tinha um banheiro para travesti.
O Carnaval sempre foi mais aberto aos gays e travestis ou hoje em dia ele é mais?
Hoje os gays e travestis são mais visíveis. Nas escolas de samba, há algumas décadas era permitido que homens desfilassem como baianas. Esses homens provavelmente não eram heterossexuais, pois o que levaria um homem nos anos 40 a colocar uma roupa baiana e desfilar junto com as baianas? O Estado, no Rio, impôs normas e proibiu a presença de homens na ala das baianas e até hoje é proibido. Aliás, os meninos passistas geralmente são gays, o samba deles é um samba afeminado. É raro você ver hoje um passista com samba masculino.
A travestilidade é parte histórica do Carnaval?
Sim. Aí tem uma questão bem antiga. O nosso Carnaval herda os antepassados do Carnaval europeu como uma festa de inversão e essa festa geralmente invertia duas coisas: a primeira era a inversão da cultura e da natureza, o homem se vestia de bicho/animal. Essa inversão não pegou muito no Brasil, é a segunda que vai pegar, que é a inversão do homem e da mulher. Que no Rio a gente chama de [Bloco das] Piranhas. E por que esse interesse do homem em conhecer o que seria ser mulher? É mais uma forma de reproduzir a dominação masculina.
Não pode haver algo enrustido quando o homem se veste de mulher?
Pode ser, mas isso é algo muito limitado. Não é porque o cara vestiu a saia da namorada que ele quer dar a bunda. É mais uma brincadeira.
Hoje há muita gente afirma que a Parada gay virou um Carnaval fora de época. Você concorda?
Por que as Paradas Gays não vingaram no Brasil? Elas começaram aqui nos anos 90. É a partir de 2000 que elas começam a ficar gigantescas, principalmente a de São Paulo. Mas estar na rua, beijar no meio de uma avenida, é um meio de reivindicação, isso é uma crítica à norma. Todo ritual é feito por alguma coisa, e a Parada ou o Carnaval deixam marcas. Há pessoas que passaram por lá, viram, e aquilo marcou. Aquela senhora que no mesmo momento vai levar o cachorro para passear, vê dois machos se pegando e pensa: "nossa, que absurdo!", ou seja, aquilo mexeu com a cabeça da pessoa, criou questionamentos. O Carnaval e a Parada são coisas distintas, cada um tem o seu objetivo e o seu formato.
Essa carnavalização da Parada gay era inevitável então?
Sim. Agora, eu não acho ruim. Algumas parcelas do movimento gay estão equivocadas quando pensam que o Carnaval não é um momento de reivindicação, como se a Parada não fosse um momento de protesto. Quanto mais se criar espaços de visibilidade, mais nós temos como ganhar, e não falo isso como antropólogo. Hoje nós temos gays evangélicos pregando dentro das igrejas. Isso é bom.
O Carnaval ajuda as pessoas a saírem do armário?
Com certeza. Alguns entrevistados disseram isso com todas as palavras. Para alguns, aquele momento é como se fosse mágico e lá podem ir e beijar na boca. De repente, saem de lá e vão para casa como se nada tivesse acontecido. Isso é quase unânime. É um momento onde você pode fazer coisas que não poderá fazer no resto do ano em locais que geralmente não são feitos para aquilo.
No Carnaval as pessoas guardam a sua hipocrisia no armário?
Sim, com certeza. Não digo a maioria, mas boa parte dela. O Carnaval tem essa possibilidade, permitir que as pessoas saiam do seu cotidiano. E tem aquela velha história, muito dos meus entrevistados diziam que no Carnaval pegavam héteros. Em outro momento esses caras não fariam isso.
Acredita que um dia a Globeleza será uma travesti?
Acho que esse dia está chegando. Isso se uma delas já não foi.