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Platonique

Qual o sentido dessas flores e desse quintal? Dessa janela e da chuva que cai? Estou aqui e só posso observá-la, de longe.

Estou sentada na sacada. Trouxe meu caderno, porque quero escrever enquanto observo.

Chove muito. Meus pés estão gelados, mas não quero sair daqui. A melhor visão que tenho dela é desse ponto da casa. A casa dela, um nível abaixo da minha, é toda avarandada, com portas grandes, em arco.

O que sei, é que ela é frágil demais, doce demais. Não anda, flutua. Usa roupas leves, sempre seda, sempre claras, transparências sobrepostas. Tem um cão peludo, grande, marrom, fiel escudeiro. Ouve música francesa, toma vinho do porto depois do almoço. Chá no fim da tarde, deitada num divã, lendo um livro. Ela toca piano.Flutua pela casa, cabelos soltos. Fala ao telefone uma vez por dia, não sei com quem. com sua mãe? Poderia ser comigo.

É casada com um homem que chega do trabalho no início da noite. Eu odeio esse homem, porque é ele que ganha beijos e abraços quando chega.

Agora, por exemplo, ela está escovando os cabelos. Sempre escova nesse mesmo horário. Senta em sua cama, de perfil para mim e é nessa hora que vejo sua nuca, o contorno dos seios sob a seda. Escova lentamente, com paciência e cuidado. Tudo o que ela faz, todos seus gestos, são assim: leves, lentos…Eu me pergunto se ela não percebe que a observo todos os dias… Acho que não.

E mesmo que percebesse, não faria diferença. O que iria pensar de uma garota mais nova. Eu tenho 20. E ela? Mas parece uma menina, tenho vontade de aninhá-la em meu colo. Frágil, sempre frágil.

Ela vive como se esperasse por algo. Eu, como se esperasse por ela.

Fui buscar meu chá e voltei. Agora tomamos o chá da tarde juntas. Não literalmente, mas ao mesmo tempo, o que já me causa certa satisfação.

Mas qual o sentido disso tudo? A chuva que parou, o cheiro da terra molhada, meu gato dormindo no tapete, ela lá e eu aqui.

Ela tem sardas no rosto e colo. Os cabelos são ruivos, longos e formam cachos nas pontas. E ela escova. Agora sentou a mesa e está a escrever. Parece uma carta. Ela escreve e limpa os olhos, está chorando.

O que adianta o chá, o gato, o cachorro, o caderno e a chuva, se ela está chorando e eu não posso confortá-la.Por que chora? O que espera? Cadê aquele homem que não aparece, agora? Ela é tão sozinha… Chama-se Gabriela.

Minha mãe que disse. E disse que também é a única coisa que sabe: “Essa moça é tão estranha e isolada!”Eu não a acho estranha, ela é encantadora, não é desse mundo. Pra mim, é uma fada, um ser elemental e eu a amo desde o primeiro dia que vi. Sim, eu amo, já faz um ano.

Ela parou de chorar, enxugou rapidamente os olhos, o marido está chegando. Carro na garagem.

Não quero ver os beijos e abraços, mas não consigo sair daqui. Tenho ciúmes dele e dos sorrisos que ela da quando estão juntos.

Por que parou de chorar? O que esconde dele? Agora sorri, está gargalhando! Estão abraçados. Ele de costas para mim e ela… ela me viu! Sim, ela viu…nossos olhares se cruzaram e ela sorriu.

Será que estou delirando?

Acordei. Hoje a chuva deu lugar a um sol esplendoroso. Meu gato está feliz, no jardim , atrás dos passarinhos. Tudo amanheceu diferente, ela sorriu pra mim.

Já me instalei aqui na sacada, com meu caderno. Tudo está com sabor de surpresa!

As portas da varanda da casa dela já estão abertas. Hoje colocou, em alto e bom som, a ária da ópera que sempre põe quando está muito animada: Nessum Dorma!

A música começa outra vez, então ela aparece, linda, sublime. Foi para o jardim. Olhou pra mim, acenou com a cabeça e sorriu.

Está cuidando das plantas, podando as roseiras…Percebeu que estou observando! Estará jogando comigo? Está me provocando, pois estou com vontade de ir até lá.

A música acabou novamente. Ela fez um carinho na cabeça do cachorro, suspirou profundamente e entrou. Eu vou até lá.

Já se passaram 6 meses. A casa dela acabou de ser ocupada por um casal com dois filhos pequenos. Depois de 6 meses, é a primeira vez que volto a sentar na sacada para escrever.

Eu a amei e ainda amo. Naquela manhã, ela voltou para dentro de casa, a música tinha acabado.

Eu vacilei algumas vezes, mas decidi ir até lá. Com certeza iria colocar a música outra vez e eu a usaria de pretexto para começar um assunto. Quem sabe oferecer discos emprestados, ou pedir? Quem sabe daria um beijo, ou diria o quanto a amo?

Fui. O cachorro me recebeu na porta afoito, pulando e latindo. Corria para dentro da casa e voltava, como se quisesse avisá-la que uma visita estava chegando.

Chamei por ela: “Gabriela?”

Pronunciar seu nome, em voz alta, me fez arrepiar. Mas, nada comparado ao arrepio que senti ao vê-la ali, na sala…

Estava caída no chão.
Morta.

Direto da Berlinale: Suzy Capó acompanha tudo sobre o Festival de Berlim

Crítica: Cisne Negro