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Quem é o sujeito do feminismo?

Nunca foi tão necessário o feminismo e urge que façamos um bom combate à visão hegemônica que considera o feminismo como uma prerrogativa exclusiva das mulheres biológicas. Enquanto proposta de reforma das normas de gênero, o feminismo histórico foi vitorioso e continua conquistando ganhos importantes, seja em relação às questões do mercado de trabalho, ao mundo da política, aos direitos reprodutivos das mulheres. No entanto, em um alcance mais radical e revolucionário, qual seja, a radical luta contra os binarismos e a naturalização das identidades, fracassou.

Sugiro que ao se falar da mulher não estamos esgotando a complexa questão feminina. As mulheres fazem parte de um campo construído como inferior, mas não se pode derivar daí o feminino como sinônimo de mulher, ou que a mulher engloba e esgota o feminino. Esse lugar é parcialmente ocupado pelas mulheres cromossomas XX. A violência contra os seres abjetos, frágeis, identificados como femininos, (transexuais, travestis e homens gays femininos) não se limita à mulher.

Há níveis diferenciados de inferiorização. Se os atributos femininos (emotividade, fragilidade, passividade) posicionam as mulheres como inferiores, quando esses mesmos atributos e performances são atualizados por outros sujeitos passamos a nos mover ao nível da abjeção, do nojo. Muitas vezes, se utiliza conceitos como estigma, abjeção, inferioridade, como sinônimos, mas seus conteúdos expressam relações distintas entre o eu e o outro.

A sistemática violência contra as mulheres tem uma relação profunda e direta com cometida contra os gays femininos, aos meninos femininos, às travestis, às transexuais. Para entendermos a natureza da violência contra a mulher, e sua persistente reprodução, não se pode circunscrever a análise ao feminino-mulher, mas ao feminino.

Ao ampliar a compreensão do lugar do feminino nas relações sociais, teremos efeitos interessantes. Um deles é reconhecimento que as travestis e transexuais podem acessar as Delegacias de Especiais de Atendimento às Mulheres com fundamento na Lei Maria da Penha.

O debate sobre o lugar do feminino e, principalmente o heteroTerrorismo das instituições sociais contra os meninos femininos, deveria ser um debate assumido com maior vigor e ousadia pelo movimento gay. Conforme apontou Eve Sedgwick, o movimento gay nunca prestou a devida atenção à problemática dos meninos femininos, o que, segundo a autora, parece reforçar a concepção hegemônica de que há desonra em ocupar o lugar de feminino entre os homens gays adultos. O perigo está em deixar o menino feminino em uma posição de abjeto inquietante, que pode revelar o abjeto inquietante do próprio pensamento gay.

No entanto, viver os atributos performáticos e subjetivos definidos como femininos não gera imediatamente uma consciência política do caráter binário e aprisionante das identidades e estruturas de gênero. O feminismo refere-se à disputa política pela explosão das estruturas naturalizantes e binárias do gênero. Há muitas plataformas feministas, muitas filiações teóricas. Sugiro pensar o feminismo como uma plataforma política de transformações radicais.

A experiência corporal é uma das dimensões para produção da rebeldia. No entanto, se a condição para transformação das relações políticas, sociais, econômicas, sexuais entre os gêneros fosse a presença de um corpo sexuado feminino, a opressão ao feminino teria sido uma ficção histórica. A consciência política e a agência transformadora não são determinadas por estruturas biológicas, por experiência localizável exclusivamente no corpo. Talvez se possa argumentar que o corpo da mulher experencia a opressão e esta vivência comum produz uma identidade política. Então, por que as mulheres já não se rebelaram há séculos? Há um nó indissolúvel na tese que busca explicar a consciência política pela experiência corpórea.

A consciência política nasce por outros caminhos que não coincidem necessariamente com a experiência próxima. Assumir como minha a dor do outro, sentir-se profundamente tocado pelas violências que são cometidas diariamente contra as lésbicas, por exemplo, e tornar-se lésbico-política significa articular novas formas de organização política e de alianças que vão além dos limites ditados ou inscritos no corpo. Essa possibilidade sinaliza com algo mais: a afetiva possibilidade de construirmos novas estratégias, definições e significados para os chamados sujeitos coletivos.

* Berenice Bento é doutora em Sociologia. Professora do Departamento de Ciências Sociais/UFRN e autora dos livros “O que é transexualidade” e “A Reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual”.

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