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Reinterpretando o Natal de Jesus

Duvido muito que no Brasil ou em qualquer outro país majoritariamente cristão, alguém consiga passar pelo período do Natal indiferente ao que acontece ao redor. Sei que existem as exceções, mas são isso, exceções, pois a maioria se contagia com o clima natalino – seja de modo comercial, afetivo-familiar ou religioso.

Seja como for, o período das festas é vivido com intensidade. Alguns fazem compras para presentear pessoas queridas, outros viajam para as cidades de origem para rever familiares e amigos e muitos ainda lembram que no Natal um menino judeu chamado Jesus, nasceu na distante Palestina. A mensagem original do Natal não desapareceu ainda do nosso mundo; aqui no Rio de Janeiro, “cidade purgatória da beleza e do caos”, faixas pedem paz aos homens de boa vontade, dia desse mesmo eu vi uma na favela que margeia a Linha Vermelha.

Eu sei que você sabe o significado do Natal e sim, ele ainda é o mesmo bem como sua mensagem; contudo, eu gostaria de repensar, reinterpretar o significado e a mensagem do Natal porque eu escrevo para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais e de alguma maneira, muitos de nós nos sentimos como um “peixe fora d’água” nessa época do ano. Muitos de nós, ao nos assumirmos, perdemos os laços familiares; muitos são solitários, principalmente os mais idosos; muitos nos sentimos excluídos com o clima de “festa de família” e todos, de alguma maneira, somos atingidos enquanto minoria, pelas práticas sociais, discursos e até mesmo propagandas que visam ao consumo de uma sociedade heteronormativa.

Sei que reinterpretar o significado e a mensagem do Natal é preciso porque sei que temos aqui uma mensagem de reavivamento existencial e espiritual para todos os socialmente excluídos, os que são postos à margem, os oprimidos. O Natal e sua poderosa mensagem têm muito que dizer para nós mais que imaginamos; tem muito que dizer para toda a sociedade cujos projetos de poder e de organização visam enquadrar em suas forminhas os que nelas não cabem e nem desejam caber!

Dos quatro evangelhos, somente dois narram o nascimento de Jesus: Mateus e Lucas. Temos aqui, em linhas gerais, duas visões: Mateus escreve na ótica de José e Lucas na ótica de Maria. Ambos incluem elementos mitológicos no fato histórico, visando dar significado ao nascimento daquele que é o Salvador do mundo.

Mateus narra que “magos do Oriente” vieram ao palácio real oferecer presentes ao recém nascido “rei dos judeus”, pois viram no Oriente a sua estrela e vieram adorar o Messias de Israel. Herodes, então rei, temeu a ameaça e mandou matar todos os meninos recém nascidos de Belém e região. Os magos do oriente seguiram seu caminho e guiados pela estrela encontraram José, Maria e o Menino Jesus; o adoraram e o presentearam.

Lucas narra que estavam próximos ao local onde nasceu o Menino, pastores de ovelhas que guardavam seu rebanho; estes receberam a visita de anjos que lhes anunciaram o nascimento do Salvador, do Messias. Eles foram até Belém, encontraram o Menino e felizes com o que viram, “divulgaram o que lhes tinha sido dito a respeito do Menino. Todos os que ouviram se admiraram das coisas referidas pelos pastores” (Lc 2.17-18).

Magos do oriente e pastores de ovelhas, segundo as narrativas de Mateus e Lucas foram os primeiros seres humanos a colocarem os olhos em Jesus, depois de José e Maria. Foram os primeiros que receberam a “boa nova” (evangelho, em grego). Os pastores e os magos do Oriente foram também os primeiros mensageiros da boa nova aos outros. O que isso significa?

Os magos do Oriente certamente eram astrônomos, não praticavam a religião de Israel, não eram circuncidados, eram estrangeiros. Esses eram impedidos de entrar no Templo de Jerusalém no pátio destinado aos “puros”, aos filhos de Israel, que traziam em seus corpos as marcas do seu “pedigree”, a circuncisão. Por serem “impuros”, os estrangeiros tinha um pátio, o mais externo do Templo, totalmente separado por uma balaustrada com inscrições que lhes proibiam a entrada nos pátios internos, sob pena de morte.

Da mesma forma os pastores também eram considerados “impuros”, tinha má reputação, a palavra deles não era válida como testemunho. Aos olhos dos religiosos judeus, estão em pé de igualdade com os “ímpios”, ou seja, os estrangeiros não judeus, os “impuros”. Também não podiam entrar nos pátios do Templo destinados aos puros. Eram serviçais, cuidavam do patrimônio alheio, portanto, pobres, marginalizados. Nas palavras de Philip Yancey, eram “joões-ninguém”.

Deus, segundo Mateus e Lucas, escolheu os olhos de pessoas consideradas impuras, pecadoras, marginais para serem os primeiros a enxergarem o Menino Jesus, o Seu Filho unigênito. Se no Templo de Jerusalém, “Casa de Deus”, literalmente para todo judeu, os impuros ficavam do lado de fora, agora, com a entrada de Jesus no planeta Terra, os impuros, os pecadores, os que não têm status, os que nem mesmo podem ser testemunhas, pois são marginais, são os primeiros a enxergarem o Deus que se fez carne e entre nós habitou.

Deus não faz acepção de pessoas como os religiosos de ontem e de hoje fazem! Deus no Natal escolheu “impuros” e deles fez mensageiros de boas novas. A religião moralista e pura da cara para fora que o cristianismo se tornou, esqueceu das narrativas dos evangelhos sobre o Natal, mas nós não podemos e nem devemos nos esquecer! Ao contrário, nós LGBTs, temos que nos apropriar dessa mensagem, aqueles “impuros” magos e pastores em Belém nos representam! Nós somos os considerados “impuros” de hoje para os religiosos hipócritas!

Neste Natal, sejamos nós, os “impuros”, os primeiros a chegarem junto à manjedoura. Sejamos nós, os “impuros”, os mensageiros das boas novas de paz e alegria que anuncia ao mundo que em Cristo encerra o medo de ser. Sejamos nós os anunciadores de um Deus que – ao contrário dos seres humanos que pensam que são seus representantes na Terra – não faz acepção de pessoas.

Por fim, gostaria que você meditasse no poema abaixo, um velho e tradicional hino de Natal, com o coração bem firmado neste novo entendimento. Feliz Natal!

É meia noite! Instante augusto é esse
Em que baixou junto a nós o Homem-Deus
Para alimpar a nossa culpa fez-se
Propiciatório que a nós abre os céus.
O Mundo inteiro freme de esperança,
Na noite que lhe dá um Salvador
De joelhos, povo! Aguarda a nova aliança!
Natal! Natal! Nasceu o redentor!

Da nossa fé que o lumieiro ardente
Conduza todos ao berço real
Tal como aos magos fez antigamente
Brilhante estrela, o esperado sinal.
O rei dos reis nasceu sem fausto ou gala
Ó poderosos, que hoje governais,
Cheios de orgulho, um Deus da lapa fala:
Curvai, curvai a fronte, filiais.

O redentor remiu qualquer agravo
A terra é livre e se abriu já o céu
Vendo um irmão em quem só era escravo
Rompe as algemas de quem era réu.
A Cristo trazes coração aberto?
Nasce Ele e sofre e morre, alfim, por nós:
ERGUE-TE POVO! E CANTA QUE ÉS LIBERTO!
NATAL! NATAL! ERGUE ALTO A TUA VOZ.

* Márcio Retamero, 35 anos, é teólogo e historiador, mestre em História Moderna pela UFF/Niterói, RJ. É pastor da Comunidade Betel do Rio de Janeiro – uma Igreja Protestante Reformada e Inclusiva -, desde o ano de 2006. É, também, militante pela inclusão LGBT na Igreja Cristã e pelos Direitos Humanos. Conferencista sobre Teologia, Reforma Protestante, Inquisição, Igreja Inclusiva e Homofobia Cristã. Seu e-mail é: revretamero@betelrj.com.

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