Antes de fazer história como veterana de Stonewall, a americana Stormé Delarverie, de 89 anos, já fazia história na música. Ela fez parte do primeiro grupo – e talvez um dos únicos – de performance drag multiracial, The Jewel Box Revue, criado em 1939. Seus shows percorreram todo o país até a década de 60 numa época difícil, marcada, principalmente, pela segregação racial.
O grupo, que inspirou o musical "A Gaiola das Loucas" nos anos 80, era composto por vinte e quatro homens vestidos de mulher e uma mulher vestida de homem: Stormé. O público não acreditava que fosse mulher por causa de sua voz de barítono. Os produtores, então, convenceram-na a se vestir de homem, o que passou a fazer com gosto também fora dos palcos. "Cortei o cabelo, vesti roupas masculinas e entrei na banda" – disse em entrevista ao blog "Zagria" em 2006. Ela acumularia ainda as funções de gerente de palco, arranjadora musical, mestre de cerimônias e mãe da trupe por 14 anos.
Nascida em 24 de dezembro de 1920, o ano em que as mulheres conquistaram o direito ao voto nos Estados Unidos, Stormé não se importa em ser chamada de "ele" ou "ela". Apesar de ser lendária – dizem que foi uma das primeiras a revidar o soco de um policial – e já ter sido alvo de documentários e estudos, muitos desconhecem sua identidade. Alguns a ignoram, como o historiador Martin Duberman, que em seu livro, Stonewall, sequer citou a veterana. Sua história também ficou de fora do filme Stonewall (1995) e de verbetes sobre a rebelião na internet. Sua música favorita é "It aint easy being green" – uma metáfora para sua condição homossexual. Seu último emprego foi como segurança em uma boate para lésbicas há alguns anos. A seguir, a entrevista concedida no lobby do Hotel Chelsea, onde mora, em Nova York, na véspera de seu último aniversário.
Qual foi a sua participação em Stonewall?
Eu não morava em Nova York quando Stonewall aconteceu. Estou aqui há 34 anos. Sou de Nova Orleans, onde tenho uma casa enorme que mora minha família, mas nunca vou. Na época, eu viajava muito, porque cantava numa banda de jazz. Eu tinha acabado de voltar para cá, de uma turnê com minha banda. Eu entrei no bar e pouco depois um policial me bateu por trás. Foi um erro. Eu só queria saber se precisavam de alguma coisa, tipo alguém que tivesse sido expulso de casa ou não tivesse dinheiro para comprar comida ou remédios.
Por que ele te bateu?
Ele achou que eu fosse um homem. Quando descobriu que não era, ele continuou batendo, não havia escolha, o tumulto já tinha se instalado. Foi quando eu revidei. Tiveram que chamar dois ou três policiais para me afastar do cara. Eles não me levaram presa, porque não queriam fazer parte daquilo. Seria o maior escândalo do mundo. Eu fui atingida pelas costas. Ele tinha que saber que estava mexendo com a pessoa errada. Ele não estava preparado para aquela situação e não esperava aquilo. O bar estava muito cheio com toda aquela confusão.
Você retornou ao local depois disso?
Não, e só estive por lá no primeiro dia da rebelião. Várias vezes eu viajei por conta própria. Quando ia aos lugares conversar com as pessoas, elas não queriam contar seus problemas se tivesse alguém por perto. O que vai comigo, fica comigo, ninguém tem nada a ver com o que as pessoas que estão a minha volta precisam.
Você frequentava bares gays na época?
Sempre fui a bares, mas só para saber se as pessoas precisavam de ajuda. Eu era do Jewel Box Revue, fiz shows por 34 anos. Sempre que estava na cidade, eu ia a esses lugares. E não importava se quem estava ajudando era homem ou mulher.
E hoje?
Eu parei de beber há muito tempo. Às vezes eu bebo uma cervejinha. Hoje eu não preciso mais checar ninguém, porque todos sabem onde moro. E se precisarem de alguma coisa sabem onde me encontrar. Eu cancelei tudo o que fazia e fiquei disponível na cidade. Você não deve sair por aí batendo nas pessoas pelas costas, principalmente se não sabe em quem está batendo.
Qual o legado que Stonewall deixou?
Hoje temos toda liberdade no mundo. Se não fosse por nós, isso não existiria. Você não precisa se preocupar se alguém vai te bater quando estiver andando nas ruas ou segurando o braço do seu amigo. Aqueles tempos se foram e não voltarão mais.
Você conhece o Brasil?
Eu conheço alguns brasileiros, aliás tenho amigos de todas as partes do mundo. Eu já fui ao Rio de Janeiro e gostei muito, me diverti bastante. Foi uma das melhores viagens que fiz na vida.