Elas existem aos milhares. Mas ninguém as vê. A não ser que você entre no obscuro mundo delas. Pode ser num bar, numa boate, num círculo de amigas, pode ser numa festinha domiciliar, ou mesmo no dia-a-dia do trabalho. Fato é que elas estão pulverizadas e, quase sempre, imperceptíveis para o público em geral. As mulheres lésbicas no Brasil parecem perdidas quanto à sua identidade, se comparadas às europeias e às norte-americanas.
Até para as héteros que querem se inserir no meio, há uma certa dificuldade. Normalmente, a “iniciação” só se dá através de uma amiga que é lésbica – e leva a hétero para algum lugar gay – ou a apresenta para suas amigas do meio. De resto, não existe aquela expressão “get out of the closet” – comportamento recorrente entre os homens gays brasileiros e de outras partes do mundo. Em função desse comportamento discreto, fica difícil saber quem são elas, o que pensam e o que querem. Elas praticamente inexistem.
O mais intrigante nisso tudo é descobrir o porquê de tanta discrição. Pesquisas comprovam que a violência contra gays atinge muito mais os homens gays do que as mulheres. Além disso, duas mulheres juntas é socialmente mais aceitável que dois homens. Algumas pessoas sentem menos impacto – até acham “moderninho” – quando veem duas meninas de mãos dadas. Outro dado: Hoje, elas pagam suas contas, se bancam, têm sua profissão e já moram sozinhas. Por que então tanta dificuldade de assumir sua homossexualidade em público?
Bom, há várias respostas. A primeira delas é a aversão a bandeiras. A maioria das lésbicas que conheço acha dispensável se expor em público quanto à homossexualidade. Eles se sentem satisfeitas em viverem inside of the closet, com seu círculo (limitado) de amizade, com os escassos bares para frequentar e com um único programa de televisão voltado a elas para assistir. Para que mais? Para que beijo gay na televisão? Para que sair em parada gay? Qual o ganho em expor aos outros sua escolha sexual?
O comportamento é reflexo, inclusive, das celebridades gays não-assumidas no Brasil. Todo mundo sabe que há uma centena delas na música, na TV, no teatro, no jornalismo… mas é consenso que bandeira não leva ninguém a lugar nenhum. Atualmente, pouquíssimas assumem sua homossexualidade, e quando o fazem, é sob a tutela empresarial. Tudo é pensado no sentido de ganhar dinheiro com a atitude de se assumir. E o discurso gira em torno do mesmo: ninguém precisa saber que se é gay.
A segunda resposta está ligada à família. As mulheres parecem ter mais medo de peitar pai e mãe para viverem tranquilas a sua homossexualidade do que os homens. Em geral, há uma tendência em poupar os queridos que “não tem nada a ver com isso”. E aí, a vida vai seguindo numa névoa de hipocrisia que também pode ser lida como discrição. No entanto, com o passar do tempo, a descoberta se torna inevitável para os pais, e toda a família convive com o fato sem tocar na ferida.
Diante desse quadro, quase fico convencida de que é melhor assim. Nenhum confronto, nenhuma rusga. A vida segue incólume. Mas meu interior rebelde não aceita tal explicação. Viver a hipocrisia dispensa muito mais energia do que ser você mesma. Ter de manter duas versões da mesma pessoa não é tarefa muito fácil e pode causar males irreparáveis à saúde. A felicidade é um princípio que deve ser perseguido, independente de atingi-lo ou não. Por isso, a importância da busca pelo espaço, pela liberdade de ser o que é.
Simone de Beauvoir já dizia que as grandes conquistas, em qualquer período da história, escondem algumas renúncias. Mas vale a pena o esforço. Ninguém discorda que seria muito bom se tivéssemos um país mais tolerante, mas livre, onde os gays pudessem demonstrar seu amor em qualquer lugar. Mas isso só acontece com mobilização dos interessados. Ficar parado só demonstra covardia e estagnação. Num país em que se paga impostos para tudo, vale a pena lutar pela cidadania que, constitucionalmente, é dirigida a todos, independente da opção sexual.
É claro que meu romantismo não é cego ao extremo. Em muitos casos, o medo passa pelas consequências de cunho econômico e até de sobrevivência. Muitos artistas temem perder público cativo caso assumam-se gays. Muitas mulheres temem perder seus empregos se revelarem sua identidade sexual. Contar para os pais pode significar sair de casa e viver uma vida de perrengue em função de um “capricho” individualista. Eu mesma já usei esses argumentos para manter meu status quo.
No entanto, na medida em que se vive como todos os outros também surge uma necessidade gritante de ser visto perante a lei como todos os outros. Estou falando de cidadania. Quero poder ter meu filho com minha namorada, quero poder expressar meu amor nos lugares em que os héteros podem, quero pode falar sobre isso entre meus amigos héteros sem parecer uma coisa “exótica”, quero poder ler uma revista direcionada ao meu estilo de vida, assim como as mulheres héteros leem “Cláudia”.
É só nessas horas que percebo o óbvio: só será possível ter isso tudo se mudarmos para o exterior ou lutar para que isso aconteça no nosso país. Cada uma pode fazer algo. Não dá para ficar a mercê do mercado apenas, que abre todas as portas quando a questão lhe rende lucros. Podemos fazer nossa parte, seja acionando a Justiça quando formos discriminadas, posicionando-nos perante os nossos próximos, ou tornando a conversa sobre a homossexualidade mais leve e esclarecedora a todos a nossa volta. Afinal, como diria Caetano, de perto ninguém é normal. E no fundo, a essência humana é mesma.
* Permaneça no armário