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“Todo gay e lésbica tem um Stonewall em sua vida para superar”, diz veterano de 59 anos

Na contramão daqueles que dizem ter lutado ferrenhamente contra os policiais na rebelião de Stonewall em 1969 está o nova-iorquino Jeremiah Newton, de 59 anos. Escritor e professor da Universidade de Nova York, o pacato veterano, com então 19 anos e assíduo frequentador do bar, disse sem rodeios que assistiu de perto ao quebra-quebra passivamente, sem se envolver diretamente na confusão. "Os jovens jogavam garrafas, pedras, lixo (…) Eu não joguei nada, estava com medo. Não sou um herói, fui apenas testemunha", disse com exclusividade ao site A Capa.

Jay – como é mais conhecido entre os amigos – também fazia parte na época do círculo de amizades do pai da pop art, Andy Warhol. Suas memórias vêm sendo guardadas em um diário que escreve desde 1966 e que, mais tarde, teria originado diversos artigos sobre o tema, inclusive o roteiro de um filme independente, "I shot Andy Warhol" (1996), do qual é também personagem. Foi ainda um dos fundadores da Associação de Veteranos de Stonewall, que luta para manter viva a história do movimento – embora o próprio tenha feito severas críticas à atual administração. Nesta entrevista concedida em Nova York, Jay falou de sua participação pacífica no movimento, a atmosfera sinistra que envolvia os bares na época e a importância de uma juventude LGBT consciente.

O que você fazia no dia da rebelião?
Eu tinha ido à praia em Rockaway e muitos gays que costumavam frequentar o local não estavam lá. O dia estava muito quente e nublado. As pessoas estavam no velório da Judy Garland, esperando numa fila enorme para ver o corpo. Não fui, porque não a conhecia nem queria ir. A vida dela era terrível, havia escândalos, infelicidade. Alguns amigos disseram que foi muito triste. Depois, fui para o Village. À uma da manhã, um amigo alertou que estavam invadindo o Stonewall. Perto dali, as detentas de uma prisão feminina – percebendo a movimentação no bar – começaram a jogar papéis em chamas pelas janelas das celas para chamar atenção. Quando cheguei, havia viaturas na calçada e umas cem pessoas na rua, olhando, falando alto. A polícia ligou a sirene e mais pessoas chegaram. Não dava para ver Stonewall por dentro, porque as janelas eram pintadas de preto e cobertas por compensados. Mas pude ouvir o barulho de vidro quebrando. A polícia saía toda hora carregando caixas de papelão. Eles levaram as bebidas e quebraram as coisas enquanto liberavam os clientes.

Havia muita gente no bar?
Não, porque o ar condicionado tinha quebrado e não havia janelas. Ninguém queria ir lá no verão.  As pessoas que saíram tiveram que mostrar a identidade. Foi quando, do outro lado da rua, perguntamos o que estava acontecendo. A polícia havia quebrado o balcão, o espelho, algumas garrafas, banheiros, tacos de sinuca. E a multidão estava crescendo. Nesse momento havia umas quinhentas pessoas.

Como estavam os ânimos a esta altura?
Todos estavam putos. Algumas pessoas gritavam "gosta de tomar no cu?" ou então "posso te chupar?" para um policial jovem que estava na porta do bar de braços cruzados. Ele olhava em volta, puto, quando finalmente alguém gritou "toma!" e jogou uma garrafa que voou sobre a cabeça dele. O policial correu para dentro do bar e alguns minutos depois o chefe dele saiu e perguntou quem havia jogado a garrafa. As pessoas começaram a jogar mais coisas e ele também correu para o bar. Foi o início de tudo.

Os policiais tinham alguma razão especial para quebrar o bar?
Eles quebraram só para atazanar. Isso eclodiu na série de cinco dias de rebelião. Todas as noites, exceto uma, algo acontecia. Eu estive lá na primeira e última, que foi a mais selvagem. Fecharam a Sétima Avenida, que é bastante larga. Havia viaturas, polícia montada, bombeiros com mangueiras, mas elas não foram usadas porque era muito louco, as pessoas corriam de um lado para o outro. Como você pode controlar jovens com energia que pulavam igual macacos? As ruas do Village são entrelaçadas. Os jovens jogavam garrafas, pedras, lixo e, quando os policiais iam atrás, eles já tinham sumido. Eu não joguei nada, estava com medo. Não sou um herói, fui apenas testemunha.

Por que o medo de jogar algo nos policiais?
Eu não queria ser preso, não tinha dinheiro para a fiança nem queria ferir ninguém, mas estava exausto. O que fizeram foi imbecil; a polícia não sabia se comportar. Eles também não sabiam onde ficava a saída de emergência. Para sair, sacaram as armas porque estavam preocupados com a possibilidade de jogarem coquetel molotov no bar. Se alguém tivesse feito isso, eles teriam aberto fogo e muitos teriam morrido. Em vez da rebelião, teria ocorrido um massacre.  

Você frequentava os bares na época?
Quando se é jovem, não se sabe quem você é. E as pessoas podem tirar vantagem disso. Eram os anos 60, havia muita violência, muitos podiam te bater ali mesmo na calçada e sair impunemente, porque a polícia era contra gays. Eles não protegiam nem as mulheres. Um homem poderia praticamente matar a esposa sem que nada acontecesse. Quando eu era jovem, sabia disso e era cuidadoso. Todos os bares eram da máfia, eram outros tempos. Eu ia com os amigos ao Stonewall e outros lugares, raramente saía sozinho. Um protegia o outro. Com muita frequência haviam batidas policiais.

Esses lugares te assustavam?
Sim, porque havia várias histórias. A polícia entrava, as luzes acendiam, todos paravam de dançar e sentavam; às vezes, ao lado de uma lésbica, para segurar na mão dela. Era uma tática para que ninguém importunasse. Os policiais checavam a identidade, iam nos fundos da bar, na cozinha… eles saíam e a porta se fechava. Era assustador, porque eles eram muito mais velhos. Eu só tinha 17 anos.

Os seus pais sabiam que você era gay na época?
Meu pai já não estava mais vivo. A minha mãe sabia, mas não se importava.

Ela ficava preocupada de você frequentar esses bares?
Ela nem imaginava que eles existiam. Ela também nunca me perguntou. Por isso mesmo,  nunca falei nada.

Você acha que os jovens dão valor a Stonewall?
Há outras histórias de gays que reagiram a autoridades, mas Stonewall foi um divisor de águas. Quando se é jovem, deve-se curtir a vida, mas também estar ciente do que a sociedade heterossexual pode fazer para machucá-lo. Eles têm as leis e o governo a favor. Cada país deveria descobrir e escrever sua história, porque ela muda e se vai para sempre, restando apenas especulação. Só existem duas fotos do interior do bar e mesmo assim foram tiradas depois da rebelião. As pessoas não tinham máquinas, porque eram grandes, caras e pesadas.

Você acha que os jovens sabem o suficiente?
Os jovens devem saber sobre a história do movimento gay, porque isso afeta o presente deles por causa da minha geração, da anterior e das posteriores que lutaram. As pessoas deram suas vidas no que acreditavam e os jovens têm que continuar a lutar.

Você imaginou que Stonewall fosse virar algo tão importante?
Todos sabiam que era incomum, mas ninguém imaginou que se tornaria algo histórico. Mas foram-se anos até que isso acontecesse. Nada foi de imediato.

Muitos que dizem ter participado, na verdade, nunca estiveram lá. Qual sua opinião sobre isso?
Eu estive lá, me lembro bem. Não creio que ninguém possa dizer que determinada pessoa não esteve na rebelião, porque havia muita gente. Como você pode conhecer cada uma? É impossível. Várias pessoas que conheço disseram estar lá, mas quando as questionei ficaram quietas. Muitas organizações gays que vieram depois de Stonewall foram fundadas por pessoas que não participaram da rebelião, mas que estavam interessadas em criar algo com quem esteve lá.

O próprio presidente da Associação, Williamson Henderson, é acusado de não ter participado da rebelião…
Eu não o conhecia naquela época. Ele é velho o suficiente para ter participado, mas eu não sei. Não nos damos bem, mas desejo o melhor a ele. Eu fui um dos co-fundadores da Associação junto com alguns amigos. Mas hoje ele se intitula como um dos fundadores principais e isso não é verdade.

Existe alguma mentira sobre a rebelião?
Stonewall é uma metáfora. Todo gay e lésbica tem um Stonewall em sua vida para superar. Há uma conjectura sobre Stonewall: não há fotos ou documentação do que ocorreu, exceto jornais. Só há fotos de algumas semanas depois, mostrando coisas quebradas. Há quarenta anos procuro documentos, mas até agora nada. Estamos na era visual: as pessoas usam a internet, vão ao Google, viajam o mundo em segundos. Então, não ter nada sobre Stonewall é estranho. Mas antes que falem alguma coisa, foi o nascimento do movimento gay moderno. Isso é o que importa. Qualquer coisa antes disso, era fora de moda. Os jovens da época que começaram tudo, como sempre, com sua energia e a filosofia do "não temos nada a perder". Já as gerações mais antigas ficaram furiosas, porque trabalharam para impor respeito. Eu não queria que ninguém me respeitasse ou dissesse o que tinha de fazer, eu me sentia vivo, queria fazer parte do mundo e pegar o que era meu. E foi por isso que aconteceu. Foi na hora certa.

E a lenda de que uma lésbica – Storme Delavaire – teria começado tudo ao ter sido a primeira a revidar os empurrões de um policial?
Ela tem uma história interessante: fazia parte de um grupo de jazz, no qual se vestia como homem. E os homens se vestiam como mulheres. Não tinha como saber quem era quem. Honestamente, eu não acho que a história dela com Stonewall seja verdade. Eu vi as pessoas e a polícia se empurrando, mas não presenciei nenhum tipo de violência no primeiro dia. Desculpe desapontá-lo.

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