Transexuais ou, como preferem denominar por aqui, transgêneros são o foco do Frameline 35, o Festival Internacional de Cinema LGBT de San Francisco.
Não que seja uma novidade trazer às telas do Castro, Roxie e Victoria Theatres representações das mais diversas de transexuais em todo o mundo. Desde a primeira edição do festival em 1977, na época chamado "Gay Film Festival of Super-8 Films", a programação incluía o documentário de curta-metragem "Changes", sobre as dificuldades enfrentadas pela própria cineasta, transexual, em obter uma carteira de motorista que refletisse seu novo gênero.
Transgêneros também estiveram no centro de um dos episódios mais polêmicos da história de Frameline. Em 2007, a direção do festival decidiu tirar da programação, já confirmada e anunciada, o filme "The Gendercator". A decisão foi tomada depois de enorme pressão de ativistas transexuais sob a alegação que o filme demonizava transgêneros, e foi criticada até mesmo por pessoas da própria comunidade trans, que desaprovaram o gesto visto como uma censura. Essa é a primeira vez, no entanto, que o festival dedicou parte da sua programação a filmes com conteúdo transexual. E jogou os holofotes em cima. E até agora está tudo bem tranquilo no front.
A programação trans começou por cima, com a exibição do filme de abertura, "Gun Hill Road", filme que estreou com muito sucesso no Festival de Sundance, em janeiro. Situado na comunidade latina do Bronx, o filme trata do confronto de um ex-presidiário que retorna à casa depois de três anos encarcerado para encontrar seu filho adolescente praticamente uma mulher. Muitos aplausos para a novata Harmony Santana (foto), que brilha no papel de uma jovem transexual em plena fase de transição.
Outro filme que deve causar em San Francisco é "Romeos", produção alemã dirigida por Sabine Bernardi, que estreou no Festival Internacional de Berlim em fevereiro e foi até mesmo comentado aqui na A Capa. No caso, Lukas acaba de fazer 20 anos, já tomou sua 25ª injeção de testosterona e está prestes a fazer a cirurgia quando vai parar, por engano, num dormitório de meninas, o que o deixa especialmente vulnerável. As coisas ficam mais complicadas para Lukas quando ele fica a fim de Fabio, um jovem gay sem nenhuma afetação, que passa o filme sem camisa dizendo que não suporta transexuais, até que descobre que Lukas é um deles. Não estou bem certa como a numerosa comunidade de transexuais masculinos de San Francisco vai encarar o fato de que o ator escalado para interpretar Lukas é um homem biológico, Rick Okon, muito gato, por sinal. Já no Brasil essa é infelizmente a única garantia de sucesso do filme.
Entre os documentários, o mais aguardado é sem dúvida "Becoming Chaz", que acompanha o processo de transição de uma pessoa que sempre esteve sob as luzes dos holofotes, Chaz Bono — que foi apresentada ao público americano quando era Chastity, uma garotinha loirinha, filha de Sonny e Cher. O documentário foi dirigido pela dupla Fenton Bailey e Randy Barbato, que já fez vários documentário bem pop e dirigiu o clássico "Party Monster".
O foco transgênero do Frameline 35 oferece ainda a oportunidade de ir mais a fundo na vida de personagens fascinantes "da vida real", tais quais a legendária atriz japonesa Miwa ou de Martina Navratilova, Renée, desde a época em que ela era o campeão de tênis Richard Raskind; rever, 30 anos depois, o clássico que inspirou Madonna, "Paris is Burning", de Jennie Livinsgtone, e compará-lo com o aspirante a cult "Leave it on the floor", de Sheldon Larry; e assistir à palestra que a curadora, cineasta e colecionadora de filmes Jenni Olsen fará sobre o assunto, com trechos de filmes que você não pode sequer sonhar que foram feitos algum dia, o que dirá em Hollywood. "Madame X", da Indonésia, mostra ainda como fazer um filme do gênero fantástico, muita afetação e purpurina, com alto teor político.
A programação com foco em transexuais é de fato arrebatadora, mas para mim a pérola dessa programação é um filme italiano pequeno, filmado em branco e preto. Vencedor do Teddy Award como melhor documentário, "A Boca do Lobo" mistura documentário com melodrama e conta a história verdadeira de Enzo e Mary, que reatam depois que Enzo cumpre a pena de 20 anos na prisão. O filme é uma lição de amor em todos os sentidos, a começar pelo fato de ter sido "encomendada" pela Fondazione San Marcellino, um ramo da irmandade jesuíta que desde 1945 ajuda os marginalizados e doentes em Gênova.
Seja qual for a sua identidade de gênero ou orientação sexual, os filmes que integram o foco transgênero dessa edição do Frameline nos lembram como somos fortes e como podemos reinventar a vida e a nós mesmos, a qualquer momento.
* Suzy Capó é presidente da Festival Filmes, primeira distribuidora de filmes de temática LGBT no Brasil.