Uma excelente notícia chegou do Judiciário do Mato Grosso na semana passada. Acionado por uma empregada que não gostava de usar o mesmo vestiário que sua colega transexual, a juíza do Tribunal Regional do Trabalho da região decidiu que a reclamante não tinha razão. No artigo desta semana, pretendo explorar os argumentos usados pela juíza em sua sentença. Será que eles contribuem para a defesa dos direitos da nossa comunidade?
Antes disso, precisamos saber quais foram as alegações da reclamante. Apesar de não termos o processo em mãos, pela mídia soubemos que foi alegado constrangimento por ter que compartilhar o vestiário feminino com uma mulher transexual.
A defesa da empresa foi no sentido de que estava cumprindo ordens e que a reclamante é quem estava sendo discriminatório. (Cá entre nós, muito admirável a postura dessa empresa, que não se envergonhou e ainda apontou o erro da reclamante. Ainda vemos poucas empresas nacionais abraçarem a causa LGBT.)
A juíza, por sua vez, decidiu que a empresa estava certa. Como nossa legislação não fala nada sobre o uso do banheiro feminino, recorreu-se a legislação internacional, mais especificamente à Declaração Universal de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), da Organização dos Estados Americanos (OEA) e aos Princípios de Yogyakarta, das quais o Brasil é signatário.
Apesar de não serem normas específicas que digam "faça isso" ou "faça aquilo", a assinatura desses documentos significa que o Brasil se comprometeu a respeitar princípios que protegem a pessoa diante da comunidade internacional. E o descumprimento desses princípios pode não significar que nosso Estado será forçado a nada, já que o direito internacional não é conhecido pela natureza coercitiva, mas também não passará em branco.
Além de se submeter à fiscalização do sistema de proteção de direitos humanos da OEA – responsável pela pressão que resultou na aprovação da lei Maria da Penha -, os Estados estão sujeitos à opinião pública internacional. Recentemente, os Estados Unidos, por exemplo, anunciou uma série de sanções contra Uganda, país africano em que o Estado promove uma política oficial de caça aos gays, inclusive com pena de morte.
Será que o Brasil, que busca se consolidar como potência mundial, e não mais como regional, está disposto a enfrentar esse tipo de sanção? Felizmente não. Na verdade, por enquanto, estamos bem longe disso. No entanto, ainda falta uma política clara e firme do Executivo federal e do Legislativo federal contra discriminações.
O Judiciário, ao contrário, tem tomado a liderança nessa empreitada anti-discriminatória. E a decisão da juíza matogrossense é um feliz exemplo disso. Ela não apenas decidiu de forma favorável à transexual, como usou argumentos extremamente humanizantes. Isso está claro pelas fontes do direito a que ela recorreu.
Além disso, a magistrada fez menção ao reconhecimento social da empregada como mulher transexual: ela se veste e se apresenta como mulher, então qual o sentido de mandá-la usar um vestiário masculino? E destacou: ninguém precisa se despir completamente no vestiário. A juíza disse ainda algo muito simples e quase óbvio, isto é, ninguém fica esfregando seus órgãos genitais nos outros dentro de vestiários.
Talvez o mais interessante dos argumentos, porém, tenha ficado para o final. Se mesmo assim a reclamante se incomoda com a presença da transexual no vestiário por razões de cunho pessoal ou relioso, paciência. Eles não são motivos válidos para ganhar uma indenização.
Acredito que a decisão foi exemplar e parte de uma convicção muito elementar para toda sociedade liberal que se pretende democrática: o Estado não pode criar obrigações para terceiros a partir de convicções meramente pessoais ou religiosas. Precisa existir alguma racionalidade compartilhável com as outras pessoas. E, não tenho dúvidas, esse ponto de partida é essencial para conquistarmos direitos básicos para a comunidade LGBT.
Thales Coimbra é advogado especialista em direito LGBT (OAB/SP 346.804); graduou-se na Faculdade de Direito da USP, onde cursa hoje mestrado na área de filosofia do direito sobre discurso de ódio homofóbico; também fundou e atualmente coordena o Geds – Grupo de Estudos em Direito e Sexualidade da Faculdade de Direito da USP; e escreve quinzenalmente sobre Direitos nos portais A Capa e Gay Brasil. www.rosancoimbra.com.br/direitolgbt