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Uma questão de direitos

O projeto de união civil continua se arrastando no Congresso, mas esse ninguém hesita em apoiar. Todo gay e toda lésbica com um mínimo de sensibilidade política sabe que exigir para nós direitos iguais aos dos heterossexuais é uma questão de justiça, pura e simples.

Deixe-me ser chique e citar a renomadíssima cientista política e filósofa Hanna Arendt, que disse em 1959 que “casar com quem quer que a pessoa deseje é um direito humano elementar, comparado ao qual […] até mesmo direitos políticos, como o de voto, são secundários”. Verdade que ela estava falando de casamento entre negros e brancos, mas permanece a defesa do direito à “vida, liberdade e busca da felicidade proclamado pela Declaração da Independência dos EUA, categoria à qual o direito ao casamento inquestionavelmente pertence”, disse a filósofa.

Vários amigos e amigas no entanto comentam que, apesar da posição pública em favor da lei que todos assumimos, na verdade não gostam muito da idéia de casamento homossexual.

A linha de raciocínio é a seguinte: o casamento é uma instituição desastrosa. Faz com que pessoas que não se amam mais ou que às vezes nunca se amaram permaneçam juntas, amarradas, por interesses variados. Provoca os absurdos que vemos todos os dias na mídia, como o acerto de divórcio de “apenas” 25 milhões de libras (uns 80 milhões de reais) pagos por Paul McCartney a Heather Mills depois de quatro anos de “casamento”.

Se tivermos a união civil, será que não teremos também pensões? Litígios nos tribunais? Ela e ela se comunicando apenas através de suas advogadas? Golpes do baú milionários envolvendo cantoras de mbp?

De fato, o cenário que esses meus amigos pintam não só é possível como um tanto deprimente. Já pensou a gente acompanhar as brigas de lésbicas famosas (na minha opinião é questão de tempo até a Caras começar a falar de nós de maneira aberta), com fotos do casamento incluindo o bolo com duas noivas, imagens das atuais amantes com as duas ex-pombinhas flagradas em situações de intimidade, flashes de olhares envenenados com legendas tipo “o conto-de-fadas acabou”?

Se olharmos para as uniões homossexuais de agora, ainda não legalizadas, é fácil constatar que temos uma vantagem grande sobre os casamentos heterossexuais: permanecemos juntas apenas pela vontade das duas envolvidas.

A lei não aceita nosso casamento (ainda), o Estado não o defende, as famílias, quando conhecem a parceira da filha, não insistem (pelo bem das aparências ou das crianças ou da religião) que continuem casadas caso alguma delas se decida pela separação, os amigos não interferem quase nunca. Não há custo além do emocional quando nos separamos. Não há acertos financeiros, não há documentos, não há fachadas a serem mantidas, ninguém no trabalho se pronuncia a favor ou contra.

Melhor ainda, ninguém é obrigada a sustentar ninguém em um casamento entre lésbicas, de nenhuma das parceiras em especial se espera que fique grávida ou cuide da casa, as mães e sogras se sentem bastante intimidadas em dar palpites sobre arranjos domésticos que não conhecem.

Nossos casamentos têm, assim, um lado ideal, romântico, de não serem instituições mas uniões baseadas no amor. Por que então alguém iria querer fazer um contrato de união civil em um tabelião? Ou, mais atual ainda, uma escritura de convivência homoafetiva? A nossa luta por direitos iguais tem lá sua razão de ser. O casamento, apesar de seus muitos problemas, tem também uma série de benefícios práticos que facilitam a vida. E vários deles podem ser reproduzidos em um documento legal que torne pública a união de duas mulheres.

Eu por exemplo, depois de sentir que estava numa união que esperava ser permanente com minha companheira, achei prudente que fizéssemos um documento garantindo uma à outra a possibilidade de movimentar contas bancárias, poupanças, pedir talões de cheque, senhas e similares caso a titular estivesse inconsciente, incapacitada ou fora do país. Esse é um direito automático dos heterossexuais casados, que só precisam levar a certidão de casamento (e paciência com as chatices burocráticas, claro) ao banco para conseguirem tal tipo de acesso caso precisem, mas que será negado pela instituição bancária à parceira da titular se ela não tiver um documento como o que assinamos.

Achei interessante concedermos uma à outra também o direito de gerenciar propriedades, pagar prestações, retirar pensões, representar a companheira perante burocracias como o INSS, na mesma condição de incapacidade ou ausência do país. Se uma de nós resolver passar alguns meses fora, a outra pode tocar tudo sem maiores problemas.

Mais ainda, achei ótimo poder dar à minha companheira o direito de decisão caso eu seja hospitalizada. É ela quem sabe minhas escolhas éticas, minhas preferências alimentares, minhas alergias, meu horror a máquinas de prolongamento da vida. É muito justo que, caso eu sofra um acidente, ela não só possa visitar-me numa UTI como dizer que tratamento apliquem ou não em mim. A ela cabe esse direito mais do que a meus pais e meu irmão, com quem eu convivo mas não diariamente.

Por conta dessas questões bem práticas, resolvemos fazer então uma escritura de convivência homoafetiva, incluindo as várias cláusulas que achamos pertinentes para nós e lavrando o documento num tabelião público diante de uma amiga lésbica que serviu como testemunha.

O interessante foi o efeito inesperado que este documento teve, ao menos para mim. Já estamos juntas faz vários anos e, como estamos as duas conscientes e saltitantes, nada mudou no nosso dia-a-dia.

Mas assinar a escritura tornou pública a confiança que temos uma na outra. Eu acredito que ela não vai limpar a minha conta e alterar minhas senhas, ela tem fé de que não vou vender o carro dela e mudar para o Paraguai. Acreditamos que uma vai ajudar a outra caso seja preciso, que vai tomar providências bancárias e hospitalares e burocráticas se necessário.

Assumir essa confiança com consciência, sabendo bem das possíveis conseqüências, é um ato de coragem. Que os heterossexuais também fazem, claro, mas acho que sem pensar direito antes. A sensação é muito boa, de algo mais sólido do que apenas a convivência.

Assim, para responder à minha própria pergunta, casar vale a pena se é com a pessoa certa.

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