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Valéria Melki Busin

Valéria Melki Busin tem muita história para contar. Um dos principais nomes do ativismo brasileiro e escritora talentosa, Valéria pesquisa atualmente sobre gênero e religião para seu mestrado no programa de Ciências da Religião da PUC-SP. Seu trabalho é estudar a influência da religião católica na construção da auto-imagem de gays e lésbicas.

Nesta entrevista exclusiva ao Dykerama.com, Valéria fala sobre os novos rumos da literatura GLS e adianta que planeja escrever dois novos livros, um sobre lésbicas mais velhas, fechando a trilogia de “O Último Dia de Outono”, dirigido a adolescentes, e “Lua de Prata”, voltado para adultos entre 30 e 40 anos, e um segundo, paradidático, sobre três garotas que vivem situações diferentes de violência. Confira abaixo a entrevista na íntegra.

Dykerama: Me conte um pouco sobre seu trabalho de mestrado. Quais são seus objetivos com essa pesquisa?

Valéria: Estou fazendo mestrado no programa de Ciências da Religião da PUC-SP, com apoio da Fapesp. Fui para lá por causa da minha orientadora, Maria José Rosado-Nunes (a Zeca), que é uma das maiores especialistas no Brasil em estudos de gênero e religião, além de ser uma pessoa fantástica (feminista, militante, brilhante). Estou estudando a influência da religião católica na construção da auto-imagem de gays e lésbicas e pretendo verificar se, pelas questões de gênero que atravessam o catolicismo, essa influência é diferente ou não para homens e mulheres homossexuais.

Dykerama: Que relação você faz entre homossexualidade e religião? Historicamente, como tem evoluído a aceitação dos gays dentro das religiões?

Valéria: Sabemos que a religião é muito importante para dar sentido à vida das pessoas e para ajudá-las a enfrentar as adversidades, mas, em algumas situações específicas, ela pode contribuir também para gerar mais sofrimento para algumas pessoas. Vemos isso, por exemplo, com a condenação explícita ao segundo casamento que o papa Bento XVI vem reforçando.

Muitas pessoas católicas heterossexuais têm se sentido estigmatizadas e excluídas por terem reconstruído sua vida com um/uma novo/a parceiro/a. O mesmo ocorre com gays e lésbicas, porque a reiterada condenação católica ao relacionamento homossexual e a reafirmação da família tradicional – composta por homem, mulher e filhos – como a única legítima pode trazer um sentimento de exclusão. Minha idéia, então, é entender como essa condenação afeta gays e lésbicas em sua forma de se ver e de estar no mundo. O trabalho ainda está em fase inicial, mas a pesquisa de campo tem me mostrado que estamos num campo de forte violência simbólica.

As grandes religiões do mundo, de forma geral e em maior ou menor grau, não aceitam a homossexualidade. As monoteístas têm sido bastante agressivas, inclusive. Pela maior liberalização dos costumes e pela luta ativa dos movimentos LGBTTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuais), temos tido muito mais visibilidade e temos conquistado direitos nos últimos anos. Se socialmente temos obtido maior liberdade, também isso vem gerando um maior acirramento de posições, de polarização entre fundamentalistas religiosos e a parcela da população que defende nossos direitos. O resultado é que temos tido menos possibilidade de dialogar e temos encontrado mais resistência e até preconceito. Existem posições mais liberais entre religiosos, mais acolhedoras e menos excludentes, mas trata-se de posições pessoais, não de políticas oficiais das hierarquias religiosas. Em relação ao nosso contexto, cuja população é majoritariamente cristã e católica, a guinada conservadora iniciada por João Paulo II e intensificada pelo Bento XVI tem trazido muita dificuldade para nós.

Dykerama: Hoje, há muitas igrejas, principalmente de denominação evangélica/protestante, que têm aceitado cada vez mais homossexuais. A que se deve essa suposta abertura e qual é o caminho mais curto, na sua opinião, para que religiões ditas conservadoras possam um dia aceitar os homossexuais em suas igrejas?

Valéria: De fato, não são muitas igrejas que aceitam homossexuais. Algumas igrejas consideradas inclusivas são, na verdade, quase que exclusivas: os pastores são gays, os fiéis são homossexuais. Acho que, neste contexto, temos quase que guetos religiosos se formando. Não acho que isso seja ruim, ao contrário: vejo muita gente encontrando paz e conforto espiritual, podendo freqüentar a igreja e participar da comunidade sem se sentir um bicho esquisito, sem padecer com culpa, sem ter de se esconder ou sofrer pela discriminação. Isso é excelente. Mas não dá para generalizar e dizer que está havendo muita aceitação. Existem muitas denominações evangélicas, inclusive, que condenam explícita e publicamente – incluindo aí programas em TV e rádio de grande alcance de público – que fazem campanhas sistemáticas contra a homossexualidade.

Num debate de que participei num programa de rádio com um pastor evangélico, cheguei a ouvir que a manifestação de afeto homossexual em público seria um dos sinais do fim do mundo. Esse tipo de afirmação é terrível, dissemina preconceito e discriminação e gera ou amplia o ódio contra LGBTTI. O que mais temos ouvido é que as igrejas cristãs, de forma geral, “acolhem os pecadores e abominam o pecado”. Traduzindo: homossexuais são bem-vindos, desde que deixem de ser homossexuais!

Não vejo um caminho curto, nem muita possibilidade em curto ou médio prazo de as religiões conservadoras aceitarem plenamente os homossexuais e a homossexualidade, ou seja, de aceitarem homossexuais sem exigir abstinência ou “cura espiritual”. Como disse, temos vivido um acirramento conservador e não sou muito otimista neste sentido. Num longo prazo, acho que o único caminho é a mudança de padrões culturais, a mudança de mentalidade, que é um processo lento, mas pode ser muito efetivo. Para isso, ainda temos que trabalhar muito, não dá para relaxar tão cedo, não!

Dykerama: Você continua atuando como militante dos direitos de GLBT? Ao seu ver, como está organizado o movimento hoje?

Valéria: Eu continuo militante, sim, e serei militante a vida inteira. É impossível, para mim, ter a consciência que tenho e ficar de braços cruzados – não conseguiria dormir! Mas eu não estou atuando dentro do movimento LGBTTI. Atuo numa ONG feminista, as Católicas pelo Direito de Decidir (www.catolicasonline.org.br), que trabalha por direitos sexuais e direitos reprodutivos, procurando desconstruir as idéias religiosas fundamentalistas que submetem as mulheres – e a população LGBTTI – a tantas injustiças. Aqui trabalhamos produzindo argumentos ético-religiosos em favor da autonomia e da liberdade das pessoas. Assim, minha militância agora se dá por meio de cursos, palestras, participação em debates, publicação de artigos etc. Neste contexto, meu mestrado também é uma forma de militância, como o são meus livros. Em Católicas, eu faço a articulação com o movimento LGBTTI, entre outras coisas. Neste ano, trabalhamos na campanha educativa realizada pela Parada de SP, fizemos palestras para professores e estudantes do ensino fundamental e médio, para professores e estudantes de universidades, de debates, entre outros. E assim que terminar o mestrado (previsto para agosto de 2008), vamos produzir materiais didáticos específicos sobre a diversidade sexual e religião.

Sobre o movimento LGBTTI, não posso opinar muito, porque não tenho participado nem dos grupos nem das reuniões políticas, mas de forma geral – e do ponto de vista de quem está mais distante desta forma de atuação – vejo uma militância forte, cada vez mais bem organizada e produtiva, mas também vejo dois problemas que ainda não superamos: um comum a todos os movimentos sociais organizados, diz respeito às disputas políticas que viram, na verdade, brigas sem fim; o outro, é a forma tradicional de militância política, que ainda não atrai muita gente. Talvez a gente precise rever algumas idéias para conquistar um público interessado, mas ainda distante. De qualquer forma, a militância tem sido vital para as conquistas que temos obtido e respeito muito os/as parceiros/as de luta.

Dykerama: Você escreveu dois livros de grande sucesso, “O Último Dia de Outono” e “Lua de Prata”? Como foi a performance desses seus dois livros no mercado?

Valéria: A popularidade dos livros não significa boa performance no mercado, ou seja, boas vendas. Sei que muita gente leu, pelo tanto de emails e feedbacks que recebo, mas pouca gente comprou. Nós ainda não temos uma cultura de apoiar quem produz cultura LGBTTI. A Vange Leonel fala muito sobre isso e concordo plenamente com ela. As pessoas querem que a gente escreva mais, porque afinal há pouca produção cultural nesta área, mas compram pouco. Em outros países, a cultura é diferente e, por isso, autores/as e cantores/as, por exemplo, têm muito mais retorno financeiro e se sentem estimulados a – e têm condições de – produzir mais. Se a gente seguisse o exemplo dos evangélicos, que consomem muito o que seus pares produzem, teríamos mais gente produzindo e mais opções, enfim. Para você ter uma idéia, meus livros da GLS ainda não esgotaram a primeira edição. Um livrinho paradidático que publiquei pela Scipione sobre preconceito racial (chama-se “Quer TC comigo?” e é voltado para adolescentes a partir de 13 anos), entretanto, já vendeu mais de 11 mil exemplares desde 2003, mesmo ano de lançamento do “Lua de Prata”.

Dykerama: Qual a situação atual da literatura “GLS”? Há muitos novos escritores, mas poucos com grande representatividade. Há preconceito também no mercado editorial?

Valéria: Acho que as editoras podem até ser preconceituosas, mas elas investem pesado no que dá retorno, no que vende, mesmo com todo o preconceito que possam ter. Se a gente não compra, claro que elas não vão investir, mesmo que não tenham preconceito. A lógica que impera é a do investimento que dá retorno. Por exemplo, tenho uma amiga – heterossexual – que escreveu um livro maravilhoso de poesia. Obteve elogios rasgados de várias editoras, mas a resposta ao pedido de publicação sempre foi negativa, com a alegação poesia vende pouco no país. Por outro lado, livros de qualidade discutível, mas que vendem muito, seguem sendo publicados, como os de auto-ajuda etc. Assim, nós temos de pensar seriamente se estamos fazendo a nossa parte, antes de criticar as editoras ou simplesmente acusá-las de homofóbicas.

Dykerama: Você está planejando algum livro novo? Algum projeto na área editorial?

Valéria: Tenho idéia para dois livros, um seria romance sobre as lésbicas mais velhas, com mais de 50 anos, o que fecharia o que eu tinha planejado para ser uma trilogia ( “O Último Dia de Outono” é voltado para as questões das adolescentes e jovens e “Lua de Prata” é voltado para as adultas na casa dos 30/40). O outro, seria um paradidático, sobre 3 garotas que vivem situações diferentes de violência e encontram apoio e solidariedade ao descobrir que podem desabafar e falar sobre os seus problemas. A idéia aqui é tentar ajudar a romper o silêncio, estimular a denúncia e a mudança de atitude. Mas honestamente, não tenho me sentido muito estimulada a escrever, ainda mais neste período do mestrado, que consome muito o tempo e a energia da gente. Mas desejo de escrever eu tenho, vamos ver.

Dykerama: Já que o assunto é mercado, como você avalia a aparente abertura ao segmento de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros? A imagem que se faz da comunidade no mercado e na mídia em geral vem se transformando? Qual é o nosso futuro nesse sentido?

Valéria: Acho que temos conquistas importantes, com resultados importantes. Por exemplo, 2007 foi o primeiro ano em que a Parada de SP teve investimento da iniciativa privada e em que marcas tradicionais quiseram ser reconhecidas como apoiadoras. Isso é fantástico, porque, para além de permitir que os eventos sejam realizados, traz um reforço de auto-estima para nós todos/as. Percebo isso, por exemplo, quando a gente vê uma propaganda bacana com LGBTTI, eu me sinto particularmente mais feliz, às vezes até fico eufórica. O mesmo aconteceu com negros e negras, que há poucos anos nunca viam mulheres, homens e crianças negras/os protagonizando propagandas com modelos bonitos e charmosos. Hoje, isso tem sido bastante comum. Minha companheira, que é negra, quando vê uma propaganda assim, se sente bem, fica mais feliz. Acho que temos boas possibilidades de trilhar o mesmo caminho.

A nossa imagem na mídia ainda sofre, especialmente em programas populares e sensacionalistas e em programas religiosos, mas ao mesmo tempo também estamos vendo novelas, seriados, filmes, matérias em revistas, propagandas que nos retratam de forma mais bacana. Isso é uma conquista recente e acho que a tendência é conquistarmos mais espaços. Isso levará tempo, mas acredito que dificilmente retrocederá. Ocorre, porém, que temos também de aprender a fidelizar marcas que nos tratam com respeito, com dignidade. Aqui, mais uma vez, a nossa atitude pode ajudar muito. Ou não…

De qualquer forma, todos e todas nós temos o dever de repudiar programas ou matérias que desrespeitam a dignidade humana, o que ainda é bastante comum especialmente na mídia televisiva. Não me sinto confortável quando vejo pessoas sendo desrespeitadas por serem pobres, deficientes, mulheres, homossexuais, gordas, etc, etc, etc. Se a sociedade se calar ou se regozijar com o desrespeito aos direitos humanos, então isso não acabará nunca. É a mesma lógica de sempre, ninguém investirá na baixaria se ela não der retorno. O problema é que, atualmente, ainda dá.

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