Êxodo é uma palavra plena de significados. No teatro grego, êxodo era o nome técnico do episodio final da tragédia; já no teatro romano, era o final de uma comédia ou "o episódio cômico que se seguia à representação de uma tragédia" (Houaiss). Êxodo também é um conceito geográfico: a emigração de povos ou de pessoas em massa. A etimologia primeira da palavra êxodo é saída, partida, marcha, procissão… Nas Escrituras Cristãs, Êxodo é o segundo livro, parte do que chamamos de "Pentateuco", um dos cinco livros atribuídos a Moisés pela tradição.
Mas não quero escrever sobre o êxodo nordestino rumo ao "sul maravilha" que ainda acontece no nosso Brasil. Tampouco quero escrever sobre teatro, pois isso foge a minha competência. Quero falar um pouco sobre o segundo livro da Bíblia, mas quero ir além do seu significado histórico, teológico e mitológico, três elementos que se cruzam na grande narrativa, na verdade, um épico, que nos conta a saída, a libertação do povo hebreu do Egito.
Todos conhecem a história, até mesmo os que não gostam da linguagem bíblica, mas gostam dos filmes da Disney ou dos musicais da Broadway: no tempo dos patriarcas, os irmãos de José o venderam para mercadores "ismaelitas", que por sua vez, o venderam para um homem chamado Potifar. Diz o narrador do livro do Gênesis que José tinha um dom, na verdade um magnífico dom: o de interpretar sonhos. E foi interpretando sonhos que José conseguiu o favor do Faraó do Egito, que o alçou ao mais alto posto do país. Um tempo de penúria e fome assolou a região, os irmãos de José foram obrigados, por isso, a "descer" ao Egito. Lá, encontraram-se novamente com seu irmão que antes tentaram matar, movidos pela inveja e pelo ciúme, mas que pelo medo de um deles, Rúben, foi vendido para ser escravo. Uma das cenas mais marcantes da história é o reencontro de José com seus irmãos. Esses voltaram à sua terra e trouxeram seu pai, Jacó. O livro do Gênesis termina contando a morte do poderoso e misericordioso José, "farto de anos" (110 anos). "Embalsamaram-no e o puseram num caixão no Egito".
E então tem início o livro do Êxodo e o narrador nos informa que passado o tempo, subiu ao trono do Egito um Faraó que não conhecia José e suas obras. Enquanto o povo do qual descendia José e que emigrou para o Egito por conta da fome, se multiplicou tanto que "a terra se encheu deles". Uma razão de Estado levou o Faraó a escravizar os hebreus; ele temia que aquele povo numeroso, no momento de guerra, se juntasse ao inimigo e então formasse, contra eles, a quinta coluna, despojando-os e saindo da terra.
O livro então passa a narrar o nascimento daquele que libertaria o povo, Moisés, o herói do Êxodo. Enviado por Deus, é Moisés que vai confrontar Faraó e libertar o seu povo da escravidão, da opressão. A saga é eletrizante: confrontos, rãs, moscas, águas do Nilo transformadas em sangue, cajado que se transforma em cobra e uma fuga de tirar o fôlego do leitor. Num momento de ápice da narrativa, os hebreus, fugindo, encontram o Mar Vermelho. No encalço deles, os exércitos de Faraó. Pensam em desistir, em retornar, mas a ordem vem: "dize ao povo de Israel que marche". Num evento milagroso, o mar se abre, eles atravessam a "pé enxuto" e, do outro lado cantam a vitória ao ver o mar engolir "carros e cavaleiros" do exército do inimigo. É disso que trata o livro do Êxodo, de libertação da escravidão. O êxodo enquanto conceito geográfico também trata, sob o ponto de vista de quem é agente dele, ou seja, os emigrantes, de libertação: do desemprego, da fome, da falta de oportunidade de ser feliz. Afinal, não é pra isso que cá estamos, para sermos felizes?
Desde a última segunda-feira eu passo por um intenso luto. Fui acordado no amanhecer com a terrível notícia do falecimento de minha tia materna. Era a minha segunda mãe. Com ela aprendi muito do que hoje sei e do que hoje gosto: aprendi a amar Bethânia, Chico, Caetano, Gal, Dolores, Caymmi, Maysa e todos que são o que nós temos de melhor em MPB. Com ela, aprendi a gostar de ler: foi ela que me presenteou com a série Vaga Lume, publicada pela Editora Ática. Com ela, aprendi a amar os poetas que falam do amor, do amor doído, não realizado e do amor que se realiza plenamente unindo corpos e almas. Bicicleta, carrinhos, "Legos"… Tanta coisa! Contudo, desde a notícia fatídica, o que mais tenho lembrado nestes últimos dias é do Livro do Êxodo e de tudo o que ele me ensina para a minha existência e a palavra recorrente não é outra senão libertação.
É possível alguém se acostumar, se conformar até mesmo se moldar à escravidão? É possível um ser humano tornar sua mentalidade escrava de um poderoso faraó? É possível levar uma vida inteira a mente cativa a esquemas que escravizam, anulando completamente o que somos até nos tornarmos um ninguém? Sim, desgraçadamente, é possível!
O livro do Êxodo nos conta que, errantes no deserto, os hebreus murmuravam contra seus líderes Moisés e Aarão; murmuravam contra Deus que os enviou a eles; murmuravam contra a falta de água e chegou um momento que murmuraram contra a falta de pão e de carne. Disseram a Moisés: "Quem nos dera tivéssemos morrido pela mão do Senhor, na terra do Egito, quando estávamos sentados junto às panelas de carne e comíamos pão a fartar!" Os hebreus estavam com saudades da escravidão, do pão e da carne da escravidão. Amoldaram-se tanto que suas consciências tornaram-se tão escravas quanto seus corpos, a mente era escrava.
Existencialmente, homossexuais masculinos e femininos aos milhões ainda são escravos, estão sob a autoridade de um poderoso faraó que lhes comanda a vida. Tenho visto isso dia a dia, ouço histórias de uma vida inteira de escravidão e de costume com a escravidão. Testemunhei isso e ainda testemunho. Homens e mulheres que são escravos desta sociedade que tem sido senhora má e perversa com eles, pois existe a norma e a norma é ser heterossexual, quem não está de acordo com a norma, é preciso escravizar, até que não tenha mais consciência de si mesmo e se torne tão dócil a ponto de não ser um ninguém, tão somente um ser humano bem adestradinho.
Tenho visto homossexuais, homens e mulheres, escravos de poderosos faraós, vivendo nos "Egitos" existenciais, terra que os tornou seres completamente nulos ou que vivem nas sombras, arriscando-se. Os poderosos faraós são muitos: pai, mãe, irmãos, família, religião, a norma social, a homofobia, todas as formas de preconceitos; e também tenho visto talvez aquele que seja o mais poderoso na hierarquia dos faraós: o sujeito mesmo, que se conformou tanto com a escravidão, que ao tornar sua mente cativa, tornou-se, ele mesmo, um faraó para si mesmo.
Vejam a desgraça: é possível ser seu próprio faraó! Escravo de si mesmo, porque não admite tornar-se livre. Tenho visto gente – e gente boa, competente, rica em talentos, em dons – que se libertos fossem, escreveriam uma linda história de vida e deixariam certamente suas marcas. Gente que se recusa a se libertar da escravidão do não ser porque tem medo de ser, faltam-lhes coragem e desejo de romper as cadeias, de se libertarem de seus faraós, de passarem por momentos críticos – os mares vermelhos – e, por isso, não cantam, nem cantarão o hino da vitória.
Não, não pensem que foi fácil pra mim. Não é pra ninguém. Não foi pros hebreus, não foi com meu melhor amigo gay, com a minha melhor amiga lésbica e nem será com você também. Não estou dizendo que é fácil assumir-se, matar o que nos mata – o medo de ser livre -; não imagino que em algum lugar do mundo seja: não viram as bombas homofóbicas na tão polida e rica Dinamarca que jogaram sobre os nossos que participam do "Out Games&quo