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A ex-deputada, o pastor e a teologia inclusiva

Não tenho por hábito assistir programas ditos sensacionalistas que a TV brasileira tanto aprecia. Contudo, quando o assunto é homossexualidade – não homossexualismo como os meios de comunicação insistem em repetir ad infinitum – por dever de ofício, tenho que assistir; porém, antes, sempre tomo uma dosagem de "Dramin".

Foi assim que me obriguei a assistir ontem, 24/02/2010, o Programa do Ratinho, no SBT. A pauta era a PLC 122/06 e o debate sobre o tema num programa sensacionalista que transforma em circo tudo o que é sério, merece a atenção dos que se engajam na luta pela real cidadania LGBT no Brasil, mesmo sentindo enjoos incômodos.

De um lado, a ex-deputada Iara Bernardi, autora do Projeto. De outro, o pastor da Assembleia de Deus, Silas Malafaia.

A presença de Iara Bernardi estava justificada, afinal, ela é a autora da PLC 122/06, embora não mais ocupe uma vaga na Câmara dos Deputados, o que lamento muito, pois uma mulher cuja biografia e trajetória política só engrandece nossa nação e nos dá esperanças nesses tempos sombrios quando o assunto é política, deveria ter assento e voz no Congresso Nacional.

Injustificada era a presença do pastor fundamentalista Silas Malafaia, que desde que o debate sobre a PLC 122/06 entrou para a agenda política, usa seu programa, pago com as contribuições de seus seguidores, para trabalhar contra os direitos civis das pessoas homossexuais, usando uma interpretação equivocada da Bíblia para fazê-lo. Além de distorcer ao seu bel prazer o que diz o texto da PLC 122/06, a fim de ganhar a opinião dos seus telespectadores: donas de casa, trabalhadores, empresários, e grande parte do cidadão evangélico.

Estava injustificada a presença de Silas Malafaia, pois a matéria que o Programa do Ratinho estava propondo debater diz respeito aos direitos civis dos cidadãos do Brasil e não vejo o que a visão estrábica, preconceituosa e equivocada de um pastor que trabalha contra os direitos civis dos homossexuais pode contribuir positivamente para o debate. No lugar dele, estaria justificada a presença de outro deputado ou senador que se posiciona contra a PLC 122/06, mas que ficasse nos argumentos legais do seu posicionamento e que não apelasse para a religião. Só o título de pastor e sua filiação eclesiástica, já demonstra, à princípio, o posicionamento, as bases e os pressupostos de Silas Malafaia.

O resultado deste debate, tendo como representante do contraditório um pastor fundamentalista, cujo temperamento agressivo, principalmente no uso da voz estridente, parecendo sempre estar no púlpito, verborrágico e com um enorme apelo ao populacho, era previsível: "ganhou" o lado opositor. Digo ganhou do ponto de vista de um telespectador do senso comum, principalmente aquele que não sabe distinguir o que é político do que é religioso (inclusive telespectadores LGBTs); e sabemos que estão entre essa parcela da população os telespectadores do Programa do Ratinho. Ou seja, o debate sobre a PLC 122/06 no Programa do Ratinho se revelou um desserviço à cidadania LGBT no Brasil e certamente ganhou mais opositores à PLC 122/06 entre a população.

Sei que nossa sociedade é democrática e nosso regime político é democrático, vivemos num país ferido por mais de duas décadas de regime de exceção. Sei que os evangélicos de viés fundamentalista são parte desta sociedade, são cidadãos contribuintes, agentes políticos cujos representantes nos Três Poderes da nação só faz crescer. Sei que Silas Malafaia é representante desta gente, quase um totem e sei, por fim, que eles devem participar do debate amplo sobre qualquer tema que envolve as leis ou os projetos de leis no Brasil; contudo, é ilegítimo debater leis ou projetos de leis tendo como pressupostos as opiniões religiosas, pois o Brasil, de acordo com nossa Constituição, é um Estado Laico e isso significa que não podemos aprovar leis ou rejeitá-las a partir de nossas opiniões religiosas, pois isso fere nossa Carta Magna, é ilegal.

Se os programas sensacionalistas querem debater desde um ponto de vista religioso temas como homossexualidade ou projetos de leis que visam garantir cidadania real a população LGBT – afinal, a liberdade de expressão é garantida pela Constituição, que façam isso desde que os convidados para o debate representem, de fato, o que estão propondo! Não é justo colocar frente a frente para debater a PLC 122/06 ou qualquer outro assunto polêmico duas pessoas que estão partindo de pontos de vista completamente diferentes!

A ex-deputada Iara Bernardi estava ali como pessoa pública, cujo trabalho de uma vida é a defesa de direitos humanos e civis, partindo de um ponto de vista não religioso, portanto, laico. O pastor Malafaia estava ali como totem do segmento social evangélico fundamentalista, partindo de um ponto de vista religioso, ainda que equivocado: é justo isso?

Como não acredito em ingenuidade da parte dos formadores de opinião como Ratinho ou qualquer outro, só posso concluir que tal pauta num programa de TV, de caráter sensacionalista, cujo horário de veiculação atinge uma parcela da população que tende a dar mais ouvidos a um pastor ou padre que uma mulher, não está bem intencionada na contribuição de nada, além de disseminar equívocos sobre um assunto tão urgente e sério! E não me venham com o manjado argumento de "isenção", pois disso o inferno está cheio!

Perderemos sempre o debate sobre homossexualidade ou processos de construção de cidadania LGBT se o quadro for esse! Por isso, faço meu apelo aos nossos representantes seja na política, seja na militância LGBT: se aceitarem participar de debates com pastores fundamentalistas, empoderem-se primeiro dos pressupostos religiosos e teológicos inclusivos, que desconstroem o discurso fundamentalista religioso de padres e pastores como Silas Malafaia. Somente assim conseguiremos um debate honesto, em pé de igualdade e com chances de vencermos. Fundamentalistas religiosos não aceitam argumentos laicos, é preciso lutar com eles em terreno comum. Ou aprendemos isso, ou seremos derrotados em cada debate; do contrário, é melhor não aceitar tais convites.

Por fim, um desabafo: até quando vocês representantes eleitos da população LGBT e vocês da militância política LGBT escolherão ignorar os teólogos e pastores inclusivos que trabalham arduamente desde um ponto de vista religioso cristão e que produzem conhecimento nesta área, visando à contribuição positiva e efetiva para o debate político LGBT? Tomem consciência, de uma vez por todas, que este debate no Brasil passa, necessariamente, pelo campo religioso cristão! Enquanto vocês ignorarem isso estarão dando um tiro nos nossos pés, prestando desserviço e contribuindo para que pessoas como o pastor Silas Malafaia e sua gente ganhe debates em redes nacionais de comunicação.

* Márcio Retamero, 35 anos, é teólogo e historiador, mestre em História Moderna pela UFF/Niterói, RJ. É pastor da Comunidade Betel do Rio de Janeiro – uma Igreja Protestante Reformada e Inclusiva -, desde o ano de 2006. É, também, militante pela inclusão LGBT na Igreja Cristã e pelos Direitos Humanos. Conferencista sobre Teologia, Reforma Protestante, Inquisição, Igreja Inclusiva e Homofobia Cristã. Seu e-mail é: revretamero@betelrj.com.

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