Uma das maiores divas do século XX completa 40 anos de morte juntamente com a rebelião de Stonewall. Mera coincidência?
Para uns, ela foi uma espécie de "mártir da instabilidade". Já para outros, "a mais controvertida figura do showbusiness americano". Para muitos, no entanto, foi uma autêntica Diva. Neste ano, a dona de toda essa controvérsia, a atriz e cantora Judy Garland, completa quatro décadas desde que, enfim, partira para a "terra de céu azul onde os sonhos se realizam", que tanto cantou em Over the rainbow, música de "O Mágico de Oz", que a consagrou como estrela internacional ainda na adolescência.
Entre uma vida de altos e baixos, ela conquistou principalmente o público gay numa época em que praticamente não havia ídolos em quem se espelhar. Curiosamente, seu velório, em Nova York, coincidiu com a rebelião de Stonewall, ocorrida na madrugada de 28 de Junho de 1969, considerada um marco na luta moderna pelos direitos dos homossexuais. Há quem defenda a teoria de que nada teria acontecido – pelo menos naquele momento – se ela estivesse viva. Afinal, a sua morte teria desencadeado a rebelião ou tudo não passou de mera coincidência?
Questão de identificação
Não é difícil imaginar uma explicação para esse elo forte entre Garland e as bees de sua época. Ícones gays estão em toda parte hoje: em seriados, no cinema, na moda e em outros segmentos. Mas no tempo em que era crime dançar ou beijar outro homem, sair do armário não era opção. Não havia modelos gays a serem seguidos nem as cobiçadas cuecas Calvin Klein. A que se apegar então? A solução era apelar para as deusas do showbusiness ou "divas". O termo, inicialmente usado pelos gregos na antiguidade para se referir à esposa de Zeus (Hera), foi apropriado pela indústria do entretenimento na década de vinte, quando começaram a emergir das telas e dos palcos mulheres com atuações marcantes. Judy não foi a primeira, mas, sem dúvida, foi uma das mais importantes. Considerada a "Elvis dos homossexuais" pela revista The Advocate, ela reunia em uma única pessoa três aspectos que encantavam os gays: admiração como performer, uma vida dramática, além do seu jeito afetado e exagerado de se expressar.
O fato foi comprovado por reportagem na revista Time, em 18 de Agosto de 1967, sobre um show de Judy no Palace, em Nova York. "Curiosamente, uma parte desproporcional de sua claque parece ser de homossexuais. Os garotos de calça apertada reviram os olhos, rasgam os cabelos e praticamente levitam de seus assentos, particularmente quando Judy canta: If happy little blue birds fly / beyond the rainwbow / why oh why can’t I", disse a revista americana, que relatou ainda a presença de um fã brasileiro na plateia. No mesmo texto, a psiquiatra Leah Schaefer afirma que tal atração ocorre porque Judy teria "sobrevivido a diversos problemas e os homossexuais se identificam com esse tipo de histeria". Para o também psiquiatra Lawrence Hattere, "Judy tomou porrada da vida, se preparou para os combates e se tornou mais masculina, tendo o poder que os gays gostariam de ter".
Metáforas de Oz
O pontapé desse processo todo foi a interpretação da pequena e adorável Dorothy, de "O Mágico de Oz". Judy tinha apenas quatorze anos, mas já protagonizava uma grande produção. O filme, lançado há 70 anos, conta a saga de uma garota frágil, órfã e incompreendida de uma cidade pequena do Kansas, que viaja por meio de um furacão até um mundo colorido e cheio de novidades. Lá, encontra um espantalho desajeitado, um homem de lata e um leão um tanto efeminado que ajudam em sua jornada até a mística Oz. A cena mais emblemática ocorre ainda no início do filme: depois de indagar "onde haveria uma terra sem problemas", Dorothy, com sua voz de rouxinol, canta os famosos versos de Over the rainbow – música absorvida rapidamente por gays de todo o globo como um hino.
Ironicamente, na vida real, Judy não seria diferente. Dizem, inclusive, que no dia de sua morte, um furacão teria passado pelo Kansas. Do filme, surgiu ainda a expressão "amiga de Dorothy", uma maneira sutil de tirar alguém do armário. De certa forma, Oz serviu de espelho para milhares de homens que desejavam escapar das limitações de uma cidade pequena e partir para lugares maiores que os aceitassem.
Mais tarde, em várias de suas performances, a atriz teria continuado a falar ao coração dos homossexuais, como na canção The man that got away sobre um amor não-correspondido. E muitos antes da existência do hino Go West, do Village People, Garland já cantava San Francisco, proclamando: Saaaan Fraaaan-cisco. When I arrive, I really come alive. Sabendo ainda de sua notoriedade entre os gays, certa vez, ela teria dito: "Tenho visões de, quando morrer, bichas cantando Over the rainbow e da bandeira de Fire Island (balneário gay) estar a meio mastro". Dito isso, nada mais nada menos do que 20 mil pessoas compareceram ao seu velório, incluindo membros da Família Kennedy. De acordo com o diretor da capela Campbell, em Nova York, "não havia nada igual desde a morte do ator Rodolfo Valentino, em 1926". Frank Sinatra teria dito ainda: "Nós seremos esquecidos. Judy, não".
Morte e relação com Stonewall
Como se não bastasse o funeral, os meios de comunicação daquele país deram uma parcela significativa de contribuição para a comoção do público, conforme constatou Williamson Henderson, de 57 anos, veterano de Stonewall: "Ela morreu num domingo, mas a emoção das pessoas foi sendo construída durante toda a semana, na medida em que Judy estampava diversas capas de jornal". No Brasil, a morte da estrela também foi notícia em diversos veículos. A revista Manchete, em 05 de Julho de 1969, noticiava: "Judy morreu aos 47 anos, como se tivesse vivendo 100, com a fisionomia dolorosamente marcada pelo desequilíbrio emocional e as crises nervosas, cinco casamentos, uma hepatite crônica e mais de uma tentativa de suicídio, excesso de bebidas e abuso de tranquilizantes, êxitos e fracassos profissionais igualmente vertiginosos". Embora Stonewall tivesse ocorrido na mesma época, a mídia brasileira sequer publicou uma nota sobre o fato.
Williamson, que também é presidente da Associação de Veteranos de Stonewall, afirma que Judy teve tudo a ver com a rebelião. "Quem diz o contrário não estava lá. O quebra-quebra não teria acontecido se Judy estivesse viva", afirma. Ele lembra o clima no dia. "Fui ao funeral, estava chocado. Muitos estavam na praia gay, no Brooklyn, ouvindo as músicas dela, tocadas exaustivamente nas rádios. Depois todos foram para os bares, especialmente o Stonewall. Falavam de seus filmes, músicas, problemas. Estávamos tristes. Alguns choravam e até faziam um brinde à ‘Santa Judy’. Várias vezes ela disse que éramos especiais e que nos amava. À uma da manhã, os policiais chegaram", relembra. Ainda segundo o veterano, os policiais atacaram o bar na noite errada. "Alguns deles admitiram que foi burrice ter feito aquilo na parte gay do Village e da Christopher Street no dia do funeral da Judy. Foi um ato desrespeitoso", criticou Williamson.
Outro veterano, o escritor Warren Allen, de 88 anos, conta uma curiosidade sobre o bar, envolvendo a diva: "A vida gay na década de 70 era aventura e mistério. Stonewall era escuro, frio e sujo. As bebidas eram aguadas. Não havia água corrente para lavar os copos. Muitos jovens frequentadores eram menores de idade. Para entrar, tínhamos que assinar um livro de visitas – dúzias de Frank Sinatras e Judy Garlands estiveram por lá", relembra.