Menu

Conteúdo, informação e notícias LGBTQIA+

in

“Os bares gays estão muito chatos hoje”, critica veterano de Stonewall

Bermudão, shorts, camiseta e óculos escuros. Assim estava Fred Tree, 69 anos, veterano de Stonewall durante entrevista concedida com exclusividade para A Capa, num bar, na orla de Copacabana, há pouco menos de um mês. O atual semblante calmo deste americano, que se intitula de maneira humorada como carioca, é bastante diferente do que vivenciou em Stonewall, em 1969, ou seja, dez anos antes de vir pela primeira vez ao Brasil. "O Rio era o maior lugar gay do mundo", disse se referindo aos tempos áureos da cidade.

Bartender desde 1958, Tree já serviu diversas celebridades, como os astros da música Mick Jagger, Janes Joplin, os escritores Truman Capote e Tenesse Williams e o ator Rock Hudson. Ele teria visto ainda uma das primeiras apresentações de Madonna em uma boate de Nova Jersey antes dela se consagrar como a rainha do pop mundial. "Achava ela feia e sem voz. Eu e várias pessoas fomos embora", desdenhou. Há 15 anos trabalha no próprio Stonewall servindo turistas de diversas partes do mundo e americanos que frequentam o famoso bar.

Neste bate-papo, em parte também realizado em Nova York, no próprio Stonewall minutos antes de o bar abrir, Tree falou sobre as dificuldades de ser gay na década de 60, sua participação histórica na rebelião e criticou os bares que, segundo ele, estão muito chatos hoje. " Todos só querem saber de academia", disparou.

Como você chegou até o Village?
Nasci no Brooklin, em Nova York. Imaginava que o Village fosse aquelas vilas da África ou América do Sul, com casas de barro, que via na TV. Aos 14 anos, quando conheci o bairro, fiquei decepcionado, não era nada daquilo. Na época os pais não deixavam os filhos saírem sozinhos.

Você já tinha saído do armário?
Já sabia que era gay. Quando jogava pôquer com os vizinhos perdia de propósito para tirar a roupa. Era a regra. Voltei ao Village em 1958, quando consegui emprego num restaurante grego. A comida era a pior do mundo. A geladeira tinha furos, por onde ratos entravam. A proprietária era uma senhora gorda que comprava um vestido a cada seis meses, embora tivesse um colar de pérolas de US$ 30 mil. Quase não havia bares na Christopher Street. Era contra a lei ser gay.

O que dizia essa lei?
Era proibido servir bebidas alcoólicas a um "homossexual consentido". Era uma lei idiota e nunca foi revogada. Havia outras estranhas: homens não podiam dançar juntos nem cuspir na calçada. Lembro-me de olharem feio nos bares, porque era gay. Um deles, o Julius, acabou se tornando o bar gay mais antigo da cidade. Trabalhei lá por quatro anos e me diverti bastante. O Nith Circle, outro bar famoso, fechou depois que o dono morreu e o filho não quis pagar propina à polícia.

Como se sabia a localização dos bares gays?
Alguém tinha que levá-lo pela primeira vez. A maioria pertencia aos mafiosos, eles sabiam que os gays tinham dinheiro. Não havia anúncios, letreiros e tudo era pintado de preto porque não queriam que olhassem de fora nem de dentro. Um dos primeiros bares gays, aberto por volta de 1958, se chamava Café Delise. Foi quando a Christopher Street começou a ficar gay.

O que explica a existência desses bares se eram proibidos?
Qualquer lugar gay era extorquido. Uma vez por semana, os policiais entravam nos bares, acendiam as luzes e todos paravam de dançar. Davam uma volta no salão, pegavam o envelope com dinheiro do bartender e depois saíam. Eram as "Brown Bag Fridays".

Muitos gays eram presos?
Às vezes a polícia quebrava a porta com um chute e prendia todos. Alguns juízes diziam que éramos perda de tempo e nos mandavam para casa. Outros diziam que éramos pervertidos e nos multavam em US$ 20, que na época era muito. Às vezes, os mafiosos mandavam advogados nos soltar e o bar voltava a abrir. Era um jogo: os policiais brincavam com a máfia, que brincava os gays. No final, ficávamos felizes, porque havia um lugar para dançar. Eu fui preso dez vezes, mas só de passar a noite. Ficávamos numa cela grande. Todos riam, fumavam. De vez em quando um cara de terno mijava sentado e eles descobriam que era uma lésbica. Daí, transferiam para a ala feminina. As lésbicas nos anos cinquenta pareciam homens.

Que tipo de gente frequentava esses bares?
Eram tempos ingênuos: não tínhamos amigos negros nem conhecíamos Porto Rico. As únicas pessoas que víamos nos bares eram os gays, as "fag-hags" (mulheres que só andam com gay) e lésbicas. A gente precisava delas para dançar. Quando havia uma dança lenta, um garoto abraçava o outro sem se mexer, só esfregando o pau. Havia poucas drags. Não as conhecia direito, porque só saía com amigos. Gipsy, a minha favorita, costumava dizer que uma dama nunca saía de casa sem suas luvas. Havia também muitos italianos e gregos cujos pais não sabiam que eram gays. Se a mãe soubesse, era considerado morto. Hoje ninguém liga, os jovens vão ao bar e me apresentam os pais. Antes, se um cara te encarasse, poderia até achar que fosse hétero e quisesse te bater. Não se agia como homossexual por causa do trabalho, dos pais.

Quando o bar Stonewall abriu?
Por volta de 1967 e tinha dois lados: onde hoje funciona um salão de manicure era o bar; e o local onde hoje fica o bar era a pista de dança. O Stonewall era sujo, antes fora um restaurante que tinha pegado fogo. Mas os donos não ligavam: eram héteros e só queriam dinheiro. Por causa das batidas policiais, o local foi vendido várias vezes. Já foi loja de malas, restaurante chinês, loja de rosquinhas. Há 20 anos virou New Jimmys, um restaurante fino demais para a área. O dono acabou transformando o local numa galeria de filmes pornô. Quando ele morreu de Aids, foi vendido e voltou a se chamar Stonewall. Mas o local fechou novamente por problemas financeiros e um conglomerado composto por dez pessoas – gays e héteros – conseguiu comprá-lo por uma micharia. Eles optaram por manter o nome original por causa da parada gay. Hoje é um lugar moderno e bonito. A geração jovem não faz ideia da história do bar, de que fomos presos umas quinze vezes por frequentá-lo.

Como foi a sua participação na rebelião?
Eu estava no Stonewall, dançando com um amigo, mas começou a ficar bagunçado e saímos. Só tomava refrigerante ou cerveja, porque a bebida era misturada com água. Sei porque meu amigo era bartender. Fomos para o Mamas Chicken, onde eu era gerente. De repente um monte de gente entrou perguntando o que estava acontecendo no Stonewall. Corremos para lá e começamos a jogar tudo que aparecesse pela frente. Quebramos janelas, atacamos a polícia. Depois de uma hora brigando, colocamos fogo no lugar.

Você apanhou muito?
Quando o reforço policial chegou, eles começaram a bater com cassetetes. Como não estava na linha de frente, não apanhei. Mas havia gente sangrando, com pulsos quebrados… O primeiro dia foi muito violento. Algumas pessoas foram presas. Na vizinhança, havia héteros, crianças, pessoas passeando com cachorros. Ninguém sabia a orientação sexual do outro. Alguns héteros deixaram os gays se esconderem em suas lojas para não serem presos. Eles não ligavam que tivesse um bar gay.

Quem começou a briga? Foi mesmo por causa da morte da Judy Garland?
Ela sempre ia aos bares gays depois de se apresentar no Palace. Mas o Stonewall não existia ainda. A filha dela, Lorna Luft, disse que atacamos o bar porque ela morreu. Não nos rebelamos por ninguém, mas por nós mesmos. Nos sentimos mal, mas porque diabos bateríamos em algum policial por causa dela? Estávamos cansados de ser atacados. E quem começou a confusão não foi a policia do Sexto Distrito, porque eles recebiam dinheiro e não estavam nem aí. O Batalhão de Choque estava atrás dos chefes da máfia, que lavavam dinheiro e não possuíam autorização para vender bebidas alcoólicas.

Quanto tempo durou a briga?
A confusão continuou na semana seguinte. E só parou quando o prefeito John Lindsey foi para a TV pedir aos policiais que deixassem os gays em paz. Ele fez com que os policiais parassem de usar a lei contra nós. O policial simplesmente entrava no bar, pegava no seu pau e quando você chamava ele para ir para casa te prendia. Eles faziam armadilhas.

Como foi a primeira parada gay?
Eu só não fui a duas edições. No primeiro ano, eu estava com um amigo quando vi algumas centenas de pessoas se alinhando num fila. Perguntamos e disseram que estavam marchando até o Central Park. Achei que fosse um bando de pela-sacos. Ia andar só um trecho, mas acabei indo até o final. À medida que andávamos, mais gente se unia. No caminho, éramos chamados de bichinhas e outras coisas. Depois que chegamos ao Central Park, voltei para o Village; achei tudo entediante. Pensávamos que fosse a primeira e última parada. Este ano estão esperando três milhões de pessoas. E eu serei um cinco juízes junto com o Randi Jonees, do Village People. Julgamos a consistência dos grupos, como no carnaval do Rio. O grupo brasileiro costumava ganhar sempre. Tem bateria de escola de samba, fantasias de carnaval e até celebridades brasileiras.

Como era a cobertura dos jornais?
Anos atrás diziam que as paradas tinham 20 mil pessoas, quando eram 200 mil. Os jornais não podiam falar para os héteros que havia milhões de bichas pela cidade. Hoje todos sabem sobre a vida gay. O problema é que sempre mostram pessoas feias e nunca os pais de um gay dizendo que estão orgulhosos ou pessoas que estão juntas há mais de cinqüenta anos.

O que mudou?
Os homossexuais hoje estão em anúncios, revistas, shows. O mundo enlouqueceu também há trinta anos quando a TV mostrou pela primeira vez um negro e uma branca se beijando.

E os bares?
Estão chatos hoje. Todos só querem saber de academia e falam como garotinhas. Na minha época tinha que bater na porta e, se não soubessem que era gay, não entrava. Quando não tinha lugar, a gente fazia sexo na cobertura dos prédios. Era divertido também perambular pelos corredores em busca de alguém que quisesse ser chupado. O sexo era seguro, fazíamos de tudo.

Você acha que o filme "Stonewall" retrata a história de maneira fiel?
O filme mostra muitas drags que iam para o bar com casacos, tiaras, mas pense bem: aquilo era permitido nos anos sessenta? Não. Até os próprios gays bateriam nelas, porque a gente não entendia. Não havia mutias drag queens. Conhecíamos algumas como Pat Morgan e Josephine. A Pat se tornou mulher, mas sua atitude ainda era muito masculina. Ela andava com os peitos de fora para conseguir chupar os garotos. Não sei se ela está viva. Na época andávamos em grupos. Hoje todo o mundo é amigável e o bar é frequentado por gays, héteros, turistas, famílias.

Fale sobre histórias inusitadas…
Em 1965, servi Mick Jagger e seu namorado. Costumava atender o Rock Hudson no Nith Circle. Já servi também o Peter Alan, o primeiro marido da Liza Minelli, que era gay. Fui amigo da cantora Janis Jopplin e da Rooma, do seriado "Golden Girls". Por toda minha vida servi muitos gays: religiosos, trabalhadores, policiais, juízes, comissionários. Uma vez, Truman Capote e o Tenesse Williams brigaram por causa de um garoto de programa que os dois estavam saindo ao mesmo tempo. Também vi a Madonna cantar pela primeira vez.

Como foi esse show da Madonna?
Foi início da carreira, numa boate enorme – a Charlie’s West, em Nova Jersey. O palco era grande o suficiente para acomodar uma orquestra. Madonna cantava sozinha com um playback. Ela já era loira, vestia uma roupa preta com crucifixos. Alguns falavam que ela seria uma estrela. Mas eu a achava feia e sem voz. Eu e várias pessoas fomos embora. Ela é tão insignificante que se estivesse do meu lado pegando fogo, não mijaria nela para apagar as chamas.

Há quanto tempo você conhece o Brasil?
Venho ao Brasil há vinte e sete anos. Quando vim ao Rio pela primeira vez, era o maior lugar gay do mundo. Fui a diversas boates que hoje não existem mais. As praias eram lotadas, muitos gays brigavam por mesas. Se não conseguisse uma até às quatro era impossível depois. Onde fica hoje o La Cueva existia um bar chamado The Clubby, de um amigo americano. Havia shows de sexo explícito. Eu também vinha muito para o carnaval.

Sair da versão mobile