Militância pra quê?
A falta de envolvimento político da comunidade GLBT dificulta a luta pelos direitos gays
É inegável que a militância é responsável pela maioria das conquistas que hoje garantem mais justiça e igualdade para os GLBTs. A aprovação das leis federais que criminaliza a homofobia e permita a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo são as principais reivindicações do momento. Mas será que o gay comum sabe disso? Interessa para ele saber que há gente que briga por direitos iguais? Tudo indica que não.
Gays e lésbicas entrevistados por A Capa conhecem o projeto de parceria civil e sabem que homofobia é uma atitude preconceituosa, mas o nível de compreensão sobre esses temas é baixo. A maioria chama a parceria de "casamento gay" e o associam à Marta Suplicy, autora do primeiro projeto de lei a tratar do tema, em 1995. Nenhum deles sabia que o projeto de Marta, que falava de união civil, foi modificado por Roberto Jefferson (o das denúncias do "Mensalão") e encontra-se em tramitação há 12 anos. Nem que o projeto está ultrapassado, principalmente porque decisões judiciais foram mais avançadas que o legislativo.
Quanto ao PLC 122/2006, projeto de lei da ex-deputada federal Iara Bernardi (PT-SP), a sigla causa estranheza. Apesar de ser a principal bandeira da militância, GLBTs comuns, que não são formadores de opinião, nem ativistas, nem envolvidos com a defesa dos direitos sexuais, desconhecem que o projeto já foi aprovado pela Câmara dos Deputados com um acordo de líderes e que se encontra em tramitação no Senado, sob relatoria da senadora Fátima Cleide (PT-RO).
Poucas palavras
Hugo Guimarães é aluno da Faculdade de Tecnologia de São Paulo e escritor. Seu primeiro livro, Poesia gay underground, será publicado neste semestre. É uma obra moderna e inteligente, que vem recebendo boa aceitação da crítica especializada. Hugo, porém, fala pouco quando é perguntado sobre casamento civil ou leis de combate à homofobia. "O casamento gay para mim não é importante. Acredito que a lei [PLC 122] diminuirá o preconceito e a violência contra gays". E só. Se ele vota em candidatos políticos pró-GLBTs? Hugo afirma que sim, "quando lembro dos números".
Respostas semelhantes são fornecidas pela funcionária pública Cláudia Oliveira. Curiosamente, ela se esforça para ficar longe dessas conquistas. Lésbica e defensora de idéias socialistas, ela diz que só vota no PT e que, se não fosse a repressão familiar, seria militante. "Mas não dá para eu aparecer na televisão dizendo que sou lésbica e depois todo mundo olhar torto no bairro", afirma. Ela diz que quer a parceria civil, mas que não irá celebrá-la com sua companheira, que namora há 14 anos. "Não precisa, nós sabemos o que sentimos. Além disso, poderia causar constrangimentos caso alguém do meu trabalho ou algum parente descobrisse".
Sobre a lei que criminaliza a homofobia, ela é rápida: "Se é para defender os gays, por que não?". Cláudia não acredita no poder mobilizador da política. "Na hora que chegam ao poder, todos eles só pensam em si próprios".
A falta do que falar é sintoma de que essas não são questões que mobilizam Hugo e Cláudia. Esclarecidos e com vários anos de escolaridade, eles têm acesso à informação, lêem muito, viajam e freqüentam ambientes em que é possível conversar sobre a vida GLBT com certa liberdade. Porém, são pouco afetados pelo movimento. E não estão sós.
Ecos distantes
"Acho que já li qualquer coisa", responde Michelly Camargo quando perguntada sobre o PLC 122. Analista de riscos em uma seguradora, Michelly orgulha-se de ter ido a todas as paradas de São Paulo. "Adoro a multidão e ficar embaixo da bandeira". Ela não lembra quais foram os temas das paradas. Na verdade, nenhum deles. Sobre a homofobia, diz que "ouviu discursar". "Conheço o Beto de Jesus da televisão e de gays famosos eu só me lembro dele, do Leão Lobo e do Léo Áquila".
Michelly tem uma vaga noção do que acontece no movimento GLBT, mas para ela essas são notícias longes demais de seu cotidiano. "No dia-a-dia, não fico pensando o quanto sou discriminada porque, senão, não vivo. Sei que meus vizinhos não gostam de mim e que posso apanhar na Paulista só porque tenho cabelos curtos e ando com roupas mais masculinas, mas não vou a nenhum grupo nem acredito que essas pessoas serão capazes de mudar a cabeça dos inimigos dos gays".
Eliezer Lima, professor de teatro, vai mais além. "Eu não conheço nenhuma ONG que trabalhe pelos gays, mas se tiver, deve viver às custas do governo". Ele mora com o namorado há cinco anos, mas fala que não se importa com a parceria civil. "Se não precisei até agora, para que me adianta?". Diz que foi discriminado no trabalho e em alguns restaurantes, mas não sabe que em seu Estado, São Paulo, há uma lei que pune a discriminação em função de orientação sexual ou identidade de gênero.
Alienação
"Uma grande maioria dos GLBTs não têm consciência da importância da militância – principalmente porque muitos vivem em círculos sociais criados por eles e lá sente-se seguros", explica Igo Martini, do Grupo Dignidade, de Curitiba, e coordenador-executivo do Projeto Aliadas, da ABGLT. "Os ricos rejeitam porque têm dinheiro e não se sentem discriminados. E é verdade: com dinheiro e bem-vestido você é recebido bem em muitos lugares, mesmo que seja para pegar a grana da biba e depois tirar onda da cara quando o cliente vai embora".
Sobre os motivos desse descompasso entre a população GLBT e a militância, Toni Reis, presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, acredita que grande parte da população seja alienada. "Isso não acontece só com a comunidade GLBT, mas também na sociedade em geral e entre outras minorias. A alienação pode ser decorrente do medo de ver sua orientação sexual exposta", acredita Toni. "Se assumissem, sentiriam a discriminação".
Beto de Jesus, que atualmente é o representante da América Latina e do Caribe no International Gays and Les-bians Association, tem opinião semelhante. "O fato de que muitos GLBTs não se movam para a barbárie de violência que se comete contra os próprios GLBTs só indica um estado de plena alienação. Ou seja, quando o indivíduo perde a compreensão do mundo, tornando-se alheio ou indiferente a segmentos importantes da realidade".
Irina Bacci, ativista do grupo INOVA, que trabalha com famílias GLBTs e defesa dos direitos humanos, acredita que essa alienação é uma traço da realidade brasileira, mas que não pode ser generalizado. "Infelizmente, isso é um problema cultural do nosso país, que a gente só se dá conta conhecendo a realidade dos nossos países vizinhos, onde se vê adolescentes e jovens envolvidos com política, com a luta por direitos, sejam eles quais forem. Aqui a população ainda acredita que os problemas da sociedade é só do Estado, que aquilo que não lhe aflige diretamente no umbigo não lhe faz falta".
Irina recorda que, em 2005, quando colhia assinaturas para a aprovação do projeto de parceria civil, ouvia muitas pessoas dizerem que não se importavam e que, por isso, não seriam beneficiadas. "Já que não iria usufruir daquele direito, não precisava lutar".
Persistência
Se os próprios beneficiados das conquistas do movimento GLBT parecem pouco se importar com as principais bandeiras, para que militar? Toni é rápido na resposta. "A liderança