Bate-cabelo com estilo
Gays e house music: um casamento que já dura mais de 20 anos
Com certeza você já a ouviu numa balada gay. Batida eletrônica com dezenas de efeitos sonoros, ritmo vibrante, atmosfera alegre e um vocal geralmente feminino, estridente e bem-marcado.
A house music deve ter aparecido a você na pista, acompanhada por muito jogo de luz e corpos sem camisa dançando, provocantes; ou, mais fácil ainda, em um show de drag, no mais autêntico "bate-cabelo"!
A house está tão ligada aos gays que muitos a incluem numa categoria chamada de "drag music" – que, na verdade, é um repertório geralmente formado por paródias, disco music e dois subgêneros da house, a tribal house e a soulful house.
O que eles não sabem é que existe uma verdadeira história no casamento entre nós e a house music. Para quem duvida que exista uma cultura gay, vale a pena dar uma olhada nesse romance.
GENEALOGIA
Apontada como o primeiro gênero de música eletrônica a ganhar vida independente, a house music é filha de um outro gênero que literalmente fez a festa na década de 70: a disco music.
Derivada de ritmos como soul e funk (o original, não o carioca) e de sons latinos, como a salsa, a disco inicialmente era tocada em "inferninhos" de Nova York, freqüentados, em sua maioria, por um público negro, latino e gay.
No entanto, tornou-se uma verdadeira febre quando, descoberta pelas rádios norte-americanas, estourou em 1975. O resto é história. A disco emplacou álbuns, artistas e filmes – quem não se lembra de Os embalos de sábado à noite? – e, em 76, faria nascer, no Brasil, a lendária discoteca Frenetic Dancin Days, no Shopping da Gávea, Rio de Janeiro, que virou até tema de novela. Gente como As Frenéticas, Lady Zu e Gretchen fizeram fama naquele tempo.
No final da década, entretanto, a febre começou a ceder nos Estados Unidos. Grandes clubes, como o histórico Studio 54, de Nova York, começaram a retirar a disco das setlists. No início dos anos 80, ela entrava em decadência. Havia um inevitável retorno às casas de pequeno porte, como o clube gay The Warehouse, de Chicago, fundado em 1977.
DATA DE NASCIMENTO
A disco music, porém, não seria abandonada por seus maiores fãs. No The Warehouse, por exemplo, o DJ Frankie Knuckles trabalhava duro para criar novas versões revitalizadas dos hits da disco.
Tecnologias disponíveis na aurora da década de 80, como mixers, baterias eletrônicas e samplers, ajudavam no processo – mas, de tanto mexer nos originais, percebeu-se que já não se fazia disco music… Nascia aí a house music!
O nome vem precisamente daquele "clubeco" de Chicago, o The Warehouse, onde o novo gênero era tocado à exaustão. As influências começam na disco e se estendem a gêneros como soul, jazz, blues, gospel, punk, synthpop e outros. "A house é derivada de disco music […]. Ela tem influência de disco, soul e funk, somados à parte eletrônica de technopop, de Kraftwerk, The Human League, Depeche Mode. O andamento se mantém próximo de 120 BPM(1), não muito mais do que isso", explica o DJ Renato Lopes, um dos pioneiros da house no Brasil.
A música I feel love, gravada em 1977 por Donna Summer, é reconhecida como a precursora da house music – mas a primeira produção autenticamente house seria lançada em 1984: a música Your Love, de Jamie Principle e… Frankie Knuckles, geralmente apontado como o "pai" do gênero.
De Chicago, a house music partiu para Nova York, onde foi difundida pelo DJ Larry Levan, do clube Paradise Garage. Depois, ganhou selos próprios, como o Trax Records, e chegou ao Reino Unido. Lá, estourou com a música Jack your body, de Steve "Silk" Hurley, em 1986. Dominar o mundo era questão de tempo.
(1) BPM beats per minute, ou batidas por minuto. Uma medida de freqüência muito utilizada na música eletrônica e que indica a velocidade da música.
ÁCIDO, PARA QUE TE QUERO?
Com cada vez mais gente tocando e ouvindo, era natural que começassem a surgir divisões e subgêneros. O primeiro deles nasceu cedo, em 1985, ainda em Chicago: era a acid house.
Em 1988, a acid house embalaria a versão britânica do Verão do Amor(2), marcado pela explosão das raves e por uma nova droga sintética, o ecstasy. Muita gente acha que o "acid" vem dessa relação polêmica com os comprimidos, mas não tem nada a ver.
"O termo acid se refere ao uso do baixo eletrônico TB-303, da Roland. É um aparelho criado no começo dos anos 80, que depois saiu de linha e foi redescoberto. Dá pra dizer que é o mais usado da música eletrônica, e, como achavam que o som dele parecia meio psicodélico, chamaram de acid. Hoje, o TB-303 já não é mais fabricado, mas existe um monte de aparelhos e softwares que o emulam", explica o DJ e jornalista Camilo Rocha.
Foi a acid house que chegou primeiramente ao Brasil e a São Paulo. "Foi a primeira experiência que a gente teve aqui – em 1986, 1987… -, em clubes como Rose Bom Bom e Nation, que já era em 88", explica a também DJ-jornalista Claudia Assef, autora do livro Todo DJ já sambou.
"Foi também uma salada. Os DJs tocavam uma faixa de rock inglês, tocavam acid house; tocavam um hip hop, tocavam acid house […]. Não tinha uma noitada inteira de musica eletrônica […]. Foi mesmo quando a Nation abriu, que era um clube ultragay, que isso aconteceu […]. A orientação musical dos DJs, Renato Lopes e Mauro Borges, era fazer música eletrônica a noite inteira", continua Assef, ressaltando a identificação entre a house music e a noite gay.
Na Nation, desfilaram algumas das primeiras drag queens paulistanas, e o clube foi responsável por inovações importantes, como o próprio conceito de night club, cultura clubber e por colocar o DJ exposto de frente para o público pela primeira vez. A casa, que chegou a contar com Camilo Rocha no cast, foi essencial para a fixação da house em São Paulo – mas não foi a primeira a tocá-la.
A história, na verdade, começou com o DJ Marquinhos MS, que, com o DJ Magal, fez uma dupla histórica no clube Madame Satã. Os dois saíram do Satã em 1986 e, depois de alguns meses, nas noites do clube gay Malícia, MS se tornaria o primeiro DJ a tocar house – ou, melhor, acid house – na cidade.
Vítima da AIDS, Marquinhos faleceu em 1994, mas seu legado não foi esquecido. No início dos anos 90, a house, com seus vários subgêneros, já dominava São Paulo e chegou a integrar os lendários clubes da Zona Leste: Toco, Contra Mão e Overnight.
Inaugurado em 1992, o clube gay Senhora Kravitz finalmente tocava house e tecno juntos pela primeira vez e esteve à frente dos primeiros pacotes de ecstasy em São Paulo – que, bem ou mal, iniciaram muita gente no som eletrônico.
Outras casas, como Nepal, Massivo e Latino, divulgaram maciçamente a house music, que hoje pode ser ouvida em boates gays e não-gays, como DEdge, The Week e Blue Space.
BRASIL BRASILEIRO
Atualmente, o Brasil já conta com produtores próprios de house music. A música Sexercise, que chegou ao topo das paradas há alguns anos, por exemplo, é do Altar, dupla formada pelos DJs brasileiros Macau e VMC.
Mauro Borges, ex-Nation, ex-Massivo e um dos primeiros capas da G Magazine, foi um dos primeiros produtores nacionais de house. Em 1990, ele lançou o grupo Que fim levou Robin?, projeto temporariamente retomado em 2004, com o CD "No país de Laura Roitman".
House music tipicamente brasileira,