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Negro Drama: Entenda o preconceito sofrido por gays negros

Análises sócio-históricas ajudam a entender preconceitos sofridos por negros gays.

Negro é silêncio, é luto.
Negro é a solidão.
Negro que já foi escravo.
Negro é a voz da verdade.
Negro é destino, é amor.
Negro também é saudade.

(Elymar Santos, “Sorriso negro”)

Enquanto esta matéria era escrita, estava em curso a eleição presidencial norte-americana. No dia em que ela foi fechada, Barack Obama, um negro, se tornou presidente do país mais poderoso do mundo.

Lá, como cá, muitos negros estão em festa. A vitória de Obama carrega um forte simbolismo. Afinal, falamos de uma população historicamente alijada de direitos, vítima de preconceitos e com dificuldades no acesso a bens, serviços e ao poder. Quando, quando à cor da pele, soma-se a orientação sexual ou identidade de gênero diferente da maioria, as coisas tendem a piorar. Lá, como cá.

Se, no Brasil, não dá para negar o duplo preconceito a que negros LGBTs são submetidos, quais seriam, estruturalmente, as razões que levaram, ou levam, a essa situação? E o que tem sido feito, em termos de mobilização social, para alterar esse quadro? É sobre isso que pretendemos lançar luz.

Mitos e histórias

Historicamente, a sexualidade negra, em nosso País, foi marcada pela escravidão. Nesse período, o branco forjou as principais concepções sobre ela que ainda dominam nosso imaginário. Sim, pois, embora os negros tenham trazido seus costumes da terra natal, foram as idéias, e preconceitos do colonizador que acabaram por modelar a abordagem sobre o assunto. Um exemplo é a crença de que, originalmente, não havia homossexuais entre os negros.

No trabalho “Os grupos de homossexuais afro-descendentes e a militância contra homofobia e racismo no Brasil”, o historiador Marcelo Cerqueira e o antropólogo Luiz Mott, comentam que “é antigo e persistente o mito da inexistência da homossexualidade no continente negro. Diversas autoridades religiosas e presidentes africanos têm feito discursos iradoscontra gays e lésbicas, associando o amor entre pessoas do mesmo sexo ao colonialismo”.

“Oficialmente”, continuam os pesquisadores, “teria sido o historiador inglês Edward Gibbon, em 1781, quem primeiro asseverou a inexistência da homossexualidade no continente africano. Esta suposta ‘excepcionalidade africana’ foi reforçada por diversos antropólogos cegados ainda pela homofobia vitoriana.”

“Por trás do mito da inexistência do homo-erotismo na África pré-colonial, estão dois outros mitos: a naturalização da sexualidade dos negros, que, movidos pelo instinto animalesco, desconheceriam os vícios antinaturais dos brancos; e a superioridade física do primitivo africano, avesso à efeminação própria do mundo civilizado”, aponta a pesquisa.

Alguma semelhança com os tempos modernos? Milton Santos, 32 anos, presidente do Estruturação, grupo LGBT de Brasília, responde. “Os negros sempre foram tratados como mercadoria, e isso está latente. Os negros se firmaram como resistentes, fortes, guerreiros, potentes e másculos. De repente, surge um gay, que é considerado fraco, impotente e que, no senso comum, vai na contra-mão de tudo que sempre foi ostentado”.

Isso ajuda a explicar o preconceito que outros negros nutrem contra negros gays, que passam a ser vistos, por exemplo, como “traidores da raça”. “Tenho uma tia que pensa assim”, conta o jornalista Emerson Nunes, 33. “Ela convive de boa comigo e meus amigos gays, mas, em vários momentos, deixa transparecer que não aceita o negro ser gay”.

Bem-dotados

Depois disso, parece que nós, gays que admitimos a existência da homossexualidade entre negros africanos e brasileiros, “corremos porfora”, não é? Ledo engano. Renildo Barbosa, 32, diretor de diversidade do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e integrante da Rede Afro LGBT, relaciona a imagem do negro forte e másculo a seu papel como reprodutor nas senzalas: “a ‘potência’ do homem negro e o ‘fogo’ da mulher negra são utilizados para manter viva a chama do machismo”.

“Não somente homens negros são explorados por seu lado sexual”, continua Barbosa, “mas as mulheres negras também, o quenos remete a questões históricas e seculares, de utilizar negros e negras escravoscomo reprodutores e amantes. Os mesmos estereótipos se aplicam aos negros LGBTs, que são tidos como melhores amantes e parceiros sexuais”. É daí que saiu aquela velha história do negro machão, ultra-ativo e bem-dotado…

Embora existam outros estereótipos relacionados aos negros – Renildo Barbosa cita, por exemplo, o profissional, “em que somos pensados como trabalhadores braçais ou em posições de comandados” – o do “negão ativo” é tão presente que foi um dos mais lembrados por nossos entrevistados. Tem até quem se aproveite dele. É o caso de Ricardo Lima**, 47, funcionário público. “Uso muito sites de relacionamento e, quando digo que sou negro, vem aquela história do ‘você é negro, ativo, pauzudo'”. Por sorte, Lima é ativo. No entanto, ele também vê um lado ruim nisso.”Quando percebo que, por parte do outro, tudo se resume àquilo, pulofora. Eu me sinto como se fosse um pedaço de carne”, conta.

Lima também comenta que o estereótipo pode não ser nada legal para os que preferem a passividade: “Tenho um amigo, negro também, que é 100% passivo. Muitos se aproximam dele acreditando nessa coisa de ‘ativo pauzudo’ e, quando descobrem, desistem”.

Mestra em Educação Brasileira, professora e ativista da Rede AfroLGBT, Negra Cris, 37, acredita que os estereótipos do ‘negro bem-dotado’ e também da ‘negra quente’ reafirmam o preconceito racial. “Alguns homossexuais não-negros pensam pelo senso comum e serelacionam com homossexuais negros acreditando nesses supostos potenciais. Claro que os relacionamentos inter-raciais não vão se dar apenas por essemotivo, mas a supervalorização sexual do negro leva à curiosidade e à permanência do senso comum de cunho racista”.

Na terrinha

Nesse ponto, é oportuno voltar à pesquisa de Marcelo Cerqueira e Luiz Mott e perguntar: mas, afinal, há provas de que sempre houve homossexualidade entre os negros na África? A ativista Sônia Regina de Paula Leite, 50, da CoordenaçãoNacional de Entidades Negras (CONEN), alerta para a dificuldade em fazer esselevantamento. Para ela, na África Negra, “houve, há muitos séculos, um período de matriarcado. Depois, seguiu-se o patriarcado. Nesse contexto, é muito difícil um discurso que não seja referente à sexualidade masculina heterossexual. Não há muitos dados”.

De fato, mesmo sobre o período escravocrata, os documentos sãoescassos. Em seu artigo “Escravidão e homossexualidade”, de 1986, opróprio Mott reconhece: “Os ‘sodomitas’ viviam na mais completa clandestinidade. A história dos homossexuais do período colonial defronta-se com a problemática de dispor como fonte documental quase exclusivamente deprocessos inquisitoriais”.

A pesquisa de Mott nos arquivos da Inquisição também encontrou relatos demonstrando que, em diferentes etnias, os homossexuais, além de atuantes, dominavam os conhecimentos místicos, mágicos e médicos como xamãs. Senão dá para generalizar e dizer que toda a África antiga, diferente da atual, era ‘friendly’, as pesquisas apontam para o fato de que, além de haver homossexualidade entre os nativos, ela provavelmente não era condenada pelo menos em alguns grupos.

No Brasil, ainda segundo Mott, parte dos cativos teria trazido essa herança. No entanto, o próprio ambiente escravocrata tinha elementos para estimular o sexo gay, como o excesso da população masculina negra em relação à feminina – “problema” pelo qual os brancos também passavam- e, claro, a dominação do corpo do negro pelos senhores.

Essa dominação se traduzia não apenas no abuso sexual das negras,mas também de integrantes do sexo masculino, fossem a

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