Um selinho à la Romeu e Julieta aqui, um olhar bem discreto ali e quando muito ouvimos um diálogo de “vamos dormir?”. Há alguns anos a televisão brasileira arrisca um pulinho ou outro fora do armário. Tudo, claro e infelizmente, com muita discrição, afinal de contas “o público não está preparado”. Concordemos ou não, é o que dizem.
Com esferas de discussão sobre diversidade sexual pipocando por aí, incluir a homossexualidade na rotina “teledramatúrgica” nacional entrou para a lista das ações politicamente corretas. Assim como as chamadas minorias, os gays ganham um ou dois personagens na tentativa de acalmar o ânimo dos ativistas.
A história vem de longe. Em 1970, Ary Fontoura interpretou o primeiro personagem homossexual em uma novela, Rodolfo Augusto, em Assim na Terra Como no Céu. Porém, 25 anos depois, Sandrinho (André Gonçalves) de A Próxima Vítima, folhetim de Sílvio de Abreu, é que ganharia destaque, sucesso e algumas bofetadas. Por conta do papel, um estudante que namorava o colega Jefferson (Lui Mendes), o ator foi agredido nas ruas do Rio de Janeiro.
Em 2004, o carnavalesco Ubiracy (Luís Henrique Nogueira) conquistou à unha algumas das dezenas de pontos no Ibope que as tramas globais costumam registrar. Em Senhora do Destino, o personagem controlava a vida, a alma e, é claro, o corpo de Turcão (Marco Vilella). Em Páginas da Vida (2006), os atores Fernando Eiras e Thiago Picchi deram vida a Rubinho e Marcelo que dividiram desde a cama até a criação da filha da empregada.
Apesar da quantidade, nenhum deles viveu grandes emoções amorosas. Beijos, abraços ou algo além de um olhar indireto nunca existiu. O motivo ainda é bem incerto. Oficialmente, os autores e atores têm o mesmo discurso: Não havia necessidade. Será que não mesmo?
ESTEREÓTIPO
Durante o ano de 2003, a TV Globo trouxe um casal de lésbicas formado por Clara (Alinne Moraes) e Rafaela (Paula Picarelli), em Mulheres Apaixonadas, com a promessa do tão esperado beijo. Frustração para uns, alívio para outros: o mais longe que as duas chegaram foi um amistoso selinho, quando interpretavam a cena final da peça Romeu e Julieta.
Dois anos depois, estreou América da dramaturga Glória Perez. Bruno Gagliasso deixou muitos a suspirar com o personagem Júnior. O rapaz passou por poucas e boas até encontrar o amor nos braços do peão Zeca (Erom Cordeiro). O beijo final foi gravado, mas, para frustração geral da nação, cortado pela diretoria da Rede Globo. Na época, a autora Glória Perez disse:“o beijo iria coroar um história bonita que construi”.
Desde então, a cada folhetim exibido pelas redes abertas, o público gay aguarda o final feliz – com direito a carinho, beijo, abraço e casamento – destinado a todos os casais héteros. “Acredito que os autores façam isso para criar polêmica, uma comoção. É marketing mesmo”, opina a estudante Ângela Gomes Correa, que é heterossexual, mas acompanha telenovelas desde a infância.
Os atores Carlos Casagrande e Sérgio Abreu, que formam o simpático casal Rodrigo e Tiago em Paraíso Tropical, ainda em exibição na Rede Globo, passeiam na trama como bons moços. Casados, são discretos, distribuem favores e não interferem no desenrolar da história. “Talvez os autores tenham a intenção de criar personagens super bonzinhos como uma forma de compensação pela homossexualidade”, explica a socióloga, antropóloga e vice-presidente da Associação da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo, Regina Facchini.
Mesmo recebendo aprovação do público, os rapazes quase não se tocam. Para Regina, a presença de gays em todas as novelas é positiva, afinal existem gays em todos os lugares. A preocupação está em como os personagens são retratados. "O gay da novela deixou de ser afeminado, mas agora estão criando um novo estereótipo: bonzinho e ‘dessexualizado’”, completa.
BEIJO
Já na Rede Record, a história parece que será outra. Ao menos, parece. Caminhos do Coração, de Tiago Santiago, mostra dois homossexuais com visões bem diferentes. Cláudio Heinrich interpreta Danilo, um empresário que esconde a orientação porque acha que pode prejudicar a carreira. Seu personagem já causa polêmica na comunidade por sua música-tema: “Robocop gay”, dos Mamonas Assassinas, que foi considerada ofensiva.
Do outro lado, está Déo Garcez como Bené, um professor bem resolvido. Em poucas semanas de exibição, a receptividade agrada os atores. “Tenho ouvido elogios da comunidade gay. Meu personagem fala o que quer sem ser ofensivo”, conta Cláudio Heinrich. Déo Garcez revela que acompanha as votações em comunidades do site de relacionamentos Orkut: “Outro dia vi que 60% das pessoas são favoráveis ao beijo (de Danilo e Bené)”.
Mesmo sem a certeza, os atores não poupam defesas para o desfecho feliz. “Está na mão do autor e do público, mas seria uma honra ser o primeiro a dar o beijo”, torce Heinrich. Seu colega de cena compartilha da mesma opinião. “Torço muito para o beijo! Temos de trazer a realidade que acontece na sociedade de hoje”, diz Garcez
Mas será que a imagem do beijo mudará a forma como a sociedade heterossexual enxerga o universo homossexual? “Não me comovo pela falta de beijo não. Só de mostrem que gays são pessoas saudáveis, divertidas e que podem ter um relacionamento estável, está bom”, diz o jornalista Thiago Mariano Cunha. “O mais importante é que saibam que somos normais, como eles”, completa.
A tempo: para dar continuidade à sucessão de personagens homossexuais, Duas Caras, novela que substituirá Paraíso Tropical, terá Bernardinho (Thiago Mendonça), garoto expulso de casa depois que o pai descobre sua orientação sexual.
Com ou sem beijo, uma coisa não podemos negar: a diversidade do mundo gay está sendo retratada nas telinhas. Como isso vai afetar nossa sociedade? Ainda é cedo para afirmar.
LÉSBICAS
E quem pensa que com as garotas as coisas são um pouco mais rosadas, engana-se. As pioneiras foram Cristina Prochaska e Lala Dehenzelin em Vale Tudo, novela de 1988 escrita por Gilberto Braga. Enquanto todos procuravam o assassino de Odete Roittman, a relação das duas não passou de uma insinuação.
A prova de que o público ainda conservava idéias arcaicas apareceu com a explosão do shopping, em Torre de Babel (1998). Silvio de Abreu encerrou a participação das personagens de Christiane Torloni eSilvia Pfeifer, vitimando-as no acidente. O motivo teria sido a péssima aceitação dos espectadores para lésbicas felizes e bem-sucedidas.
A pseudovingança das meninas chegou na pele da estudante Jennifer (Bárbara Borges) e da médica Eleonora (Mylla Christie) de Senhora do Destino. As namoradas foram acolhidas pelo pai de Jennifer e terminaram juntinhas, com direito à cena que poderia dizer que as duas poderiam estar juntas na cama. Nada muito claro e um pouco longe da realidade, como manda o figurino da teledramaturgia brasileira.